O impedimento de quem ocupa a presidência da República, em qualquer nação, é motivo de trauma. O impeachment de Richard Nixon, decorrente do caso Watergate, provocou uma mancha na política americana durante anos. Houve tentativas de se repetir a manobra, com Bill Clinton e com Donald Trump, mas as inciativas não foram adiante também por conta do abalo que um processo como esse provoca dentro da sociedade.
No Brasil, ocorre justamente o contrário. Desde a queda de Fernando Collor, que renunciou ao final do processo de impeachment, mas foi condenado à perda do mandato assim mesmo, falamos deste dispositivo legal como se fosse algo corriqueiro – mas não deveria ser assim. Alguns anos depois da queda de Fernando Collor, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores iniciou uma campanha chamada “Fora FHC”, cujo objetivo era conseguir o impedimento de Fernando Henrique Cardoso sob qualquer alegação.
O sucessor de Efeagá, Luiz Inácio Lula da Silva, também passou por maus bocados quando eclodiu o escândalo do Mensalão. Cogitou-se em voz alta o impeachment. Mas, naquela época, o PSDB, o maior partido de oposição, julgou que era melhor deixar Lula sangrando até às eleições e reconquistar o poder através das urnas.
Ocorre que Lula se recuperou, foi reeleito e fez sua sucessora, Dilma Rousseff. Esta situação deixou uma lição para os políticos: não deixe para amanhã o impeachment que você pode fazer hoje. Ou seja, mais uma contribuição para banalizar os casos de impedimento.
No segundo mandato de Dilma, o cenário político estava caótico. A inabilidade da presidente em manter a maioria no Congresso e conduzir a economia criou uma crise e a oposição se aproveitou. Usou um motivo questionável – o das pedaladas fiscais – para aprovar sua remoção do cargo. Por mais vil que seja a causa do impedimento de Dilma, um governo que não consegue obter 172 votos num colegiado de 513 para se safar do impedimento mostra que não tem sustentação alguma. E, nesta situação, pouco importa o motivo. A queda é o único desfecho possível.
De qualquer forma, o tombo de Dilma acaba sendo mais uma contribuição para banalizar uma ferramenta que teoricamente só pode ser utilizada em último caso.
No governo de Jair Bolsonaro, não foi diferente. O impeachment acabou sendo uma espécie de válvula de escape contra a antipatia que o presidente provoca em alguns setores da sociedade (não somente a esquerda, é bom frisar). Bolsonaro falou alguma bobagem? Impeachment nele! Foi grosseiro? Vamos impedi-lo! Quebrou a liturgia do cargo? Hora de removê-lo!
Nesta toada, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, recebeu mais de 60 pedidos de impeachment. Isso quer dizer mais de 2 processos por mês. Entende-se a falta de paciência em relação ao comportamento infeliz do mandatário e às manifestações de incompetência de alguns ministros (em especial os de Saúde e de Relações Exteriores). Mas impeachment é uma coisa séria. Não podemos banalizá-lo assim. Há outras formas de se materializar a indignação e o protesto. Mas não através de algo que deve ser utilizado apenas em circunstâncias especiais.
Na Europa, em função do parlamentarismo, as trocas de poder são mais fáceis e menos traumáticas de se fazer. Mas se exige um constante toma-lá-dá-cá que exaspera os políticos. Numa coligação, por exemplo, até um partido com, digamos, quatro deputados pode falar grosso e fazer exigências de gente grande – afinal, aqueles quatro votos são importantes para compor a maioria parlamentar.
Quando a governabilidade se esvai, dissolve-se o governo. E tudo recomeça, sem grandes comoções. Para quem tem interesse no parlamentarismo e suas adversidades, há uma série na Netflix chamada “Borgen”. Ela mostra justamente os bastidores de um governo dinamarquês, composto por maioria exígua e cuja liderança é de uma mulher. O seriado apresenta as negociações e crises diárias do gabinete. Nada diferente dos perrengues do presidencialismo – mas, definitivamente, sem os traumas recentes provocados pela banalização das ameaças através dos pedidos de impeachment.