Aceitar ditames de políticos é a renúncia das liberdades mais básicas
As recentes decisões de fechar comércios e definir, por meio de um “comitê de científicos“, quais são as “atividades essenciais” que podem funcionar esquentaram os ânimos e debates.
Mais profundo do que o debate sobre as decisões políticas para conter a pandemia está uma discussão necessária.
Afinal de contas, o que é essencial?
Em filosofia, o essencial é aquilo que confere ao particular a sua característica mais importante, aquela sem a qual este particular não existiria. Ao longo da história, inúmeros debates existiram sobre a essência das coisas, do mundo, dos números, dos fenômenos, dos entes.
No cotidiano, o essencial constitui aquilo de mais básico, necessário e indispensável. É nestes termos que se afirma o economicamente necessário.
O que não pode faltar para que a sociedade funcione? Pensando nestes termos, é óbvio que surgem replicações dos direitos positivos, como a necessidade de alimento, segurança, abrigo. Não há vida sem pessoas alimentadas, sem pessoas medicadas, sem pessoas em segurança.
Para manter estas atividades essenciais é preciso que exista transporte (e postos de gasolina), energia, sistemas de dados e sistema bancário, alimentação (cultivo, colheita, controle de pragas, transporte, industrialização).
A lista é, obviamente, grande.
Entretanto, o debate sobre o que é essencial para a economia se assemelha a um debate muito presente na educação. O que é essencial ensinar?
Faça essa pergunta e depare-se com os comentários ao redor dela: a impressão é a de que as respostas são sempre de cunho pessoal.
Se não uso a fórmula de Bhaskara no meu trabalho, o ensino de matemática não foi essencial. Se não me é importante saber se uma oração é subordinada predicativa, o ensino de gramática não foi essencial. Se não trabalho em um laboratório de genética, o ensino de biologia não foi essencial.
Cada sujeito é a sua própria medida para o mundo que o cerca.
Para responder aos que indagam sobre a importância de se aprender sobre tantos assuntos nos anos escolares, eu costumo responder:
1) Não temos a visão do todo.
A escola é o momento de apresentar conteúdos aos alunos. Por não sabermos para onde seguirão e quais são suas aptidões e afinidades, precisamos apresentar tudo a todos para que cada um siga seu caminho tendo a maior gama possível de opções. Não ensinar tudo é limitar os alunos.
2) Há importâncias ocultas no aprendizado de disciplinas que consideramos inúteis.
Muitas delas nos trazem novas formas de pensar e resolver problemas. Aprender essas disciplinas cria sinapses que serão utilizadas no futuro sem que tenhamos consciência disso.
3) Por último, trago Hannah Arendt para dizer que a novidade da próxima geração só aparecerá se dermos a ela todo o saber possível disponível.
Se tentamos moldar a geração com os conhecimentos específicos ou limitados, estamos apenas permitindo que a nova geração implante uma ideia antiga que lhe foi herdada.
Essas respostas para a questão do “educacionalmente essencial” podem iluminar o debate sobre o economicamente essencial.
Não-essencial para quem?
Quando Eduardo Leite (PSDB), governador do RS, decreta que apenas alimentos podem ser comercializados nos supermercados, falta-lhe completamente a visão do todo. Embora alimentos sejam altamente necessários, há tantas necessidades diárias das pessoas que nenhum governo é capaz de perceber.
Uma lâmpada é essencial para que uma pessoa de idade não tropece e se acidente no meio da noite. Um chuveiro é essencial para que o banho gelado não adoeça o morador da Serra Gaúcha. As coisas quebram e precisam ser recompradas, repostas, arrumadas.
Em Salvador, sob uma forte onde de calor, o governo proibiu até mesmo a venda de ventiladores (político deve achar que todos os mortais têm ar-condicionado em casa).
Além disso, por mais que não seja possível ver, há diversas outras conexões que não somos capazes de compreender na economia. Vários dos empreendimentos listados como não-cruciais para a vida humana são, com efeito, integrantes da cadeia de suprimentos daqueles outros empreendimentos tidos como cruciais para a vida humana. Os próprios hospitais, por exemplo, não podem permanecer funcionais sem toda uma cadeia de suprimentos minimamente funcional. E os trabalhadores dos hospitais podem precisar de recorrer a serviços não-essenciais para se manterem sãos.
Se, por exemplo, a peça de um aparelho de ar-condicionado do hospital quebra, ou, igualmente ruim, se qualquer peça de qualquer equipamento hospitalar (e todos eles são cruciais) tem de ser reposta, de onde elas virão? Além de o comércio de manutenção e reparação ter sido fechado em algumas localidades, ordenar uma peça nova para as poucas fábricas que ainda estão operando não é viável (por causa do fator tempo). E as distribuidoras não necessariamente estão estocadas. Dependendo da peça, ela pode estar em falta. E aí o hospital tem de parar suas atividades. E em meio a um surto.
Se ocorre uma pane em algum computador ou equipamento eletrônicos dos hospitais, nada pode ser feito, pois as oficiais de consertos também estão fechadas em determinadas localidades.
E todo o setor de serviços voltados para o necessário relaxamento e distração das equipes médicas, que são seres humanos como nós e que estão intensamente sob pressão, também está abolido. A rotina dessas pessoas é hospital-casa-hospital, sem nada mais com o que se distrair.
Até mesmo se o celular de algum deles estragar (o que é perfeitamente factível), não há o que fazer, pois as lojas de consertos de celulares também estão fechadas. Ou seja, o médico nem sequer conseguirá se comunicar.
Com efeito, está proibido até mesmo comprar uma latinha de cerveja para relaxar após um dia extenuante.
Ou seja, além de haver inúmeras atividades e necessidades interconectadas, até mesmo produtores são consumidores. Definir o que é essencial na economia é impedir novas conexões, é limitar a criação de redes que facilitam a resolução de problemas sociais.
Por fim, as restrições na economia impedem que o novo surja. O mercado funciona para resolver problemas. Em um novo momento de pandemia, surgem novas demandas e lacunas que podem ser preenchidas através da criatividade empreendedora. Limitar a economia é limitar as novas soluções, reproduzindo um modelo antigo, imposto por quem detém o poder.
Castas
Há de se considerar, para além das frases de efeito e dos panfletos, que o essencial numa economia é a produção e a comercialização de bens. Limitações sobre quem pode produzir e comercializar, como pode produzir e comercializar, onde pode produzir e comercializar, o que pode ser produzido e comercializado, não é uma defesa do que é essencial em uma economia.
O essencial em uma economia é a liberdade.
E nenhum político tem a capacidade de discernir e decidir para todos nós o que é e o que não é essencial. Esse descritor homogêneo não é aplicável a indivíduos e suas atividades. Qualquer que seja a definição desta palavra nebulosa, o fato é que, em última instância, os governos empregaram o termo para criar um sistema de castas separando indivíduos “dignos” dos “indignos”.
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Filipe Celeti
Publicado anteriormente em: cutt.ly/GxGZbTt