A ciência econômica deve ser livre de juízo de valor
Toda ciência é, por definição, isenta de juízos de valor. Ou seja, ele é livre de vieses e opiniões do cientista que possam impactar a análise.
Tal princípio é uma das grandes contribuições da revolução científica.
David Hume articulou no século XVIII o problema do “ser” e do “dever ser”. Argumentava que não se pode derivar o que “deveria ser” a partir do que “é”.
Essa dicotomia era uma forma analítica de fatiar escopos para aprofundar o conhecimento. A ciência deve se limitar a cuidar dos fatos, daquilo que “é”, ao passo que a filosofia política e a ética, por exemplo, formam disciplinas voltadas ao que “deve ser”.
O princípio da neutralidade se aplica também às ciências sociais, em particular à econômica. Como dizia Ludwig von Mises, a “economia é apolítica ou não-política, e se refere sempre aos meios, nunca à escolha dos fins últimos”.
É, portanto, a discussão sobre o que funciona e o que não funciona, de forma a alcançar certos fins dados.
Mises não acreditava em um científico “tem de ser”. Muito pelo contrário: ele afirmava que toda ciência necessariamente não deve fazer juízo de valor — wertfrei, em alemão. Ele, em concordância com Hume, acreditava ser inútil tentar inferir um “tem de ser” de um “é”.
Ele sustentava que “não existe algo como um científico ‘tem de ser'”, e “não existe algo como uma ciência normativa, uma ciência que faça juízo de valor ditando o que tem de ser feito”.
Mises acreditava que não existe algo como um “valor objetivo”, seja no mercado de trocas voluntárias, seja não conduta humana em geral.
Escola Austríaca não necessariamente é libertarianismo
Nas ciências naturais como a física, a química e a biologia, é razoavelmente trivial afastar juízos de valor. Experimentos controlados em laboratório — replicáveis e que isolam o objeto de estudo de todas as demais influências— deixam pouco espaço para contaminação por valores pessoais.
Já nas ciências econômicas, é muito mais difícil evitar que preferências individuais contaminem a análise, pois os fenômenos estudados pela ciência econômica — os quais incluem dinheiro, sistema bancário, preços, salários, agências. reguladoras, serviços de saúde, teoria do monopólio e vários outros tópicos — estão repletos de implicações morais.
Porém, declarações concretas e científicas sobre estes fenômenos que constituem a disciplina da ciência econômica têm necessariamente de ser de valor neutro. (Por “científicas” referimo-nos ao fato de que as declarações envolvem relações de causa e efeito; de modo algum estamos afirmando que a economia se assemelha às ciências físicas).
Assim, descrever o funcionamento do sistema bancário de reservas fracionárias, por exemplo, é uma tarefa positiva (de caráter prático), e não uma normativa. Agora, discutir se tal sistema é desejável já é uma tarefa normativa, e qualitativamente separada da explicação da mecânica desse sistema.
A Escola Austríaca tenta fazer exatamente isso: separar análises econômicas de suas implicações morais. Ela explica como as coisas funcionam, e não como deveriam funcionar. Ela é, portanto, uma ciência econômica positiva (não confundir com o “positivismo“, que é outra coisa), e não normativa. Ela não faz juízo de valor.
A Escola Austríaca se limita apenas a explicar os fenômenos econômicos (causas e consequências). Ela não prescreve nada. Ela nada diz sobre como algo deve ser.
Eis um sumário dos pontos realmente importantes a serem entendidos:
- A Escola Austríaca nada tem a dizer sobre a ausência ou a existência do estado. Igualmente, ela nada tem a falar sobre a existência ou sobre a abolição de todos os impostos e regulamentações. Tampouco tem algo a dizer sobre a moralidade da guerra às drogas ou sobre a filosofia do Objetivismo.
- A Escola Austríaca é uma ciência que se dedica exclusivamente a explicar o funcionamento da ciência econômica, bem como as consequências de cada política econômica adotada.
- A Escola Austríaca não faz juízo de valor. Ela não está no ramo de dizer como as coisas devem ou não devem ser.
- Fazer juízos de valor, dizer se algo deveria ou não existir, se tal política é ética e moral, é a função da filosofia libertária. Consequentemente, dizer que “imposto é roubo” e “imoral”, que o “estado não deveria existir”, ou que “a segurança e justiça devem ser privatizadas” são afirmações repleta de juízo de valor. Sendo assim, tratam-se de posições da filosofia libertária, e não da Escola Austríaca.
- Obviamente, a filosofia libertária pode utilizar o arcabouço econômico fornecido pela Escola Austríaca para concluir sobre a indesejabilidade do estado e das regulamentações. Porém, tal conclusão normativa é exclusivamente da filosofia libertária.
- No que tange a impostos, intervenções, Banco Central, guerra às drogas e existência do estado, a Escola Austríaca apenas explica quais são as consequências. Quaisquer juízos de valor a respeito destas medidas estão fora do âmbito da Escola Austríaca, e já adentram a filosofia libertária.
- Um economista seguidor da Escola Austríaca, ao falar sobre impostos ou sobre controle de preços, irá se limitar a explicar como eles funcionam e quais as suas consequências. Ponto. A partir do momento em que ele adentrar questões morais, ou mesmo falar sobre a desejabilidade de tais medidas, ele não mais está falando do ponto de vista da Escola Austríaca. A partir do momento em que ele emite um juízo de valor, ele saiu do escopo da Escola Austríaca e adentrou o da filosofia libertária.
Portanto, para deixar bem claro: a Escola Austríaca fala apenas sobre ciência econômica, e adota uma abordagem positiva em vez de normativa. A Escola Austríaca apenas se limita a explicar como funciona a economia e quais serão as consequências de determinadas políticas econômicas. E só.
Ela nada a tem dizer sobre tamanho de estado, por exemplo. Quem fala sobre tamanho de estado é a filosofia libertária, a qual pode, aí sim, utilizar argumentos econômicos da Escola Austríaca.
Em termos práticos, libertários e anarcocapitalistas tendem a ser seguidores das ideias de Escola Austríaca. Mas nem todo seguidor das ideias da Escola Austríaca é libertário ou anarcocapitalista.
Para concluir
A Escola Austríaca, enfatizando, não é uma ciência normativa. Ela não faz recomendações. Ela é uma ciência positiva, isto é, ela apenas explica como funcionam as coisas. Fazer recomendações é função da filosofia libertária — que pode ou não se basear na Escola Austríaca —, e não da ciência econômica genuína.
A função da economia é descrever causas e explicar consequências. Só. E é exatamente isso o que faz a Escola Austríaca de Economia. Dizer se determinadas políticas são desejáveis ou não, se são éticas ou não, se são nocivas ou não já é algo do campo da filosofia. A ciência econômica é positiva ao passo que a filosofia é normativa.
Tendo entendido tudo isso, vale concluir ressaltando que uma pessoa não pode fazer um comentário inteligente sobre questões normativas caso ela não entenda as questões mecânicas do sistema.
Por isso, se uma pessoa quiser discorrer sobre a desejabilidade ou a moralidade de, por exemplo, um salário mínimo de R$ 15 mil reais, de controle de preços de alimentos, de medicina socializada e de agências reguladoras, ela precisa antes estar totalmente ciente das consequências econômicas de tais medidas (algo que exige o domínio da ciência econômica).
Então, só então, ela poderá coerentemente falar sobre a ética e a moralidade de se defender tais políticas. Infelizmente, o que mais vemos hoje no mundo são pessoas defendendo políticas de acordo exclusivamente com quão “belas” elas soam, ignorando completamente suas reais (e quase sempre nefastas) consequências econômicas.
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Helio Beltrão e Anthony Geller
Publicado anteriormente em: cutt.ly/vvLfEj9