Não existe “propriedade intelectual”, mas sim monopólio protegido pelo estado
Comprei um par de pantufas para minha mãe nesta semana. Uma etiqueta na sola interna incomodava. Li antes de jogar fora: “US patent nº 9.212.440” ao lado de três desenhos com setas que indicavam a área externa, o interior e a sola da pantufa.
Curioso, verifiquei na internet do que tratava a patente improvável. Pareceu-me apenas um “método” para orientar a lã na sola interna, mas o órgão oficial de patentes americano se convenceu da originalidade da invenção.
Ou seja: todos os demais fabricantes estão, por lei, proibidos de fazer pantufas semelhantes.
No mundo atual, em contraste com algumas décadas atrás, quase tudo é patenteável. Há alguns anos, a Apple travou uma guerra judicial contra Samsung, Google e o sistema Android e outros fabricantes de celular. Uma das disputas se referiu à violação da patente de “deslizar para destravar” o celular. Outra disputa tinha por base o uso de “ícones de apps com bordas arredondadas”.
A Apple, aliás, conseguiu registrar a patente de desenho nº D670.286, que protege qualquer aparelho retangular com bordas arredondadas (tablets, por exemplo).
No setor de tecnologia, há um emaranhado de disputas judiciais no qual advogados ganham, mas consumidores perdem. Custos legais já representam 12% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, uma espécie de imposto sobre a inovação. O sistema de patentes atual parece estar prejudicando o que pretendia originariamente incentivar: a inovação.
Propriedade, não. Monopólio protegido pelo estado
Quando Bill Gates e Steve Jobs começaram a empreender em suas garagens, não ligavam para patentes. Aproveitavam código e ideias de terceiros e compartilhavam as suas. Se tivessem que pagar royalties ou fossem impedidos de usar códigos de terceiros, não teríamos hoje boa parte do que temos.
A justificativa original do sistema de patentes era incentivar a criação violando o menos possível a liberdade de uso das ideias disponíveis na sociedade. Seria uma espécie de mal necessário para incentivar a criação. Estabeleceu-se um monopólio legal por 15 a 20 anos ao primeiro que registrar a invenção junto ao governo.
E esta é a palavra-chave: trata-se de um monopólio protegido pelo estado.
Não existe ‘propriedade intelectual’; o que há são monopólios intelectuais. Idéias, imagens, fórmulas, sons, combinações de letras em uma página e criações não são bens escassos: são coisas que podem ser reproduzidas indefinidamente. Por esta razão, elas não podem ser consideradas posses. Logo, uma “propriedade intelectual” nada mais é do que a criação de uma escassez artificial pelo uso da força estatal.
Isto, vale ressaltar, é uma medida contra a propriedade real, e não em defesa da propriedade. Afinal, se você não pode usar sua propriedade para simplesmente duplicar uma ideia minha, isso significa que eu, o dono da propriedade intelectual, expropriei de você a sua “real” propriedade.
Ademais, assim como qualquer monopólio, em vez de criarem incentivos à inovação, os monopólios intelectuais acabam desestimulando-a, pois restringem a concorrência: o monopolista fica acomodado com o privilégio (muito longo, por sinal), e os concorrentes ficam desestimulados a investir em áreas já protegidas, com medo de represálias administrativas e judiciais.
Além disso, há uma série de consequências não-intencionais, como a paralisação do brainstorming criativo e a distorção na alocação dos gastos empresariais.
Argumentos contrários aos monopólios intelectuais, especialmente nos dias atuais, quando vivemos a era da internet, existem aos montes e são absolutamente irrefutáveis, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico. Existem, por exemplo, estudos de caso demonstrando que setores sem imposição de “Propriedade Intelectual” são muito mais inovadores e criativos do que setores cuja execução do PI é enorme. O mercado da moda, como bem explicado por Johanna Blakley em palestra disponível no TED, é um grande exemplo.
No ramo da moda, as cópias surgem literalmente da noite pro dia. E, no entanto, trata-se de uma das indústrias mais lucrativas do mundo. Não há absolutamente nenhum tipo de direito autoral ou de patente. A pirataria corre solta e ainda assim a indústria está cada vez mais forte. A cada ano surgem novas grifes, mas o consumo de roupas de uma marca específica só aumenta (exceto em épocas de crise econômica, obviamente).
Você pode comprar cópias de roupas e bolsas de enorme qualidade, e ainda assim as marcas originais continuam ganhando fábulas de dinheiro. Os grandes nomes da sua indústria continuam inacabados, e todas as suas obras são copiadas livremente.
O mesmo vale para a indústria de cosméticos e de perfumes. Estas também só se expandem. Embora as cópias existam em profusão, os investimentos em linhas caras de perfumes segue inabalado.
Pela lógica, por não ter monopólio intelectual, a indústria da moda não teria nenhum incentivo para ser criativa e investir. Consequentemente, já deveria estar morta há muito tempo. Não haveria mais grifes, e ninguém mais frequentaria shoppings para comprar roupas de uma marca específica.
Covid-19 e quebra de patentes: piorando o ruim
O custo de um monopólio por lei é conhecido: menos produção e preço maior, simultaneamente. Por isso, no caso de doenças e saúde pública, há uma consequência moral bastante óbvia, que é o aumento de mortes.
Pensando dessa forma, governos de mais de 60 países já concordaram em quebrar a patente das vacinas de Covid-19.
Eis um perfeito exemplo de como piorar o que já é péssimo: adicione à pandemia uma quebra de contratos.
Na prática, esses governos populistas querem ter tudo ao mesmo tempo: violar contratos, mas seguir incentivando inovação futura.
Monopólios intelectuais são ruins e devem ser revogados, mas não subitamente. Se algo estava no contrato, este algo não deve ser subitamente rompido, mas sim renegociado na próxima renovação de um contrato.
Assim como governos não deveriam quebrar regras retroativamente, a ideia de que a quebra de patentes surtirá efeito imediato (que é o que se deseja) não procede, até porque a batalha legal será custosa e longa. Ademais, vacinas não são como máscaras, com um processo industrial simples.
Não parece haver uma combinação de equipamentos, matérias-primas e capacidade técnica disponíveis para acelerar a produção. Adicionalmente, os principais fabricantes têm vendido a vacina a preços de custo para países mais pobres, o que retira o incentivo a produzir, mesmo sem royalties.
No entanto, o problema central do sistema é que não existem estudos que comprovem que não teríamos os medicamentos e vacinas atuais sem as patentes (caso da Suíça, cujas farmacêuticas só conseguiram impor patentes a partir do ano 1977). Com efeito, como mostraram os autores Michele Boldrin e David Levine em seu livro Against Intellectual Monopoly, segundo uma pesquisa do British Medical Journal em 2006, apenas 2 dos 15 maiores avanços da medicina foram resultado de patentes.
Para concluir
Nesta era de economia exponencial, as patentes se tornaram inibidoras da inovação. O setor de moda é o mais inovador, a despeito de não ser protegido por patentes.
É preciso ser mais rápido e melhor que o competidor, sempre se reinventando. A patente joga a rivalidade para uma corrida pelo registro e aos tribunais do tapetão.
É preciso aproveitar a onda e reformar o sistema.
“A dádiva do conhecimento,” — escreveu Hayek em 1966 — “que tanto custou para ser conseguida por aqueles que estão na vanguarda, permite aos seguidores alcançar o mesmo nível de conhecimento a um custo muito menor”.
E prossegue:
A expansão do conhecimento é de crucial importância porque, embora os recursos materiais irão para sempre permanecer escassos e terão de ser reservados para propósitos limitados, o uso de novos conhecimentos (em que não os tornamos artificialmente escassos por meio de patentes que concedem monopólios) é irrestrito.
O conhecimento, uma vez alcançado, se torna gratuitamente disponível para o benefício de todos. É por meio desta dádiva gratuita do conhecimento adquirido pelos experimentos de alguns membros da sociedade que o progresso generalizado se torna possível; que as conquistas daqueles que estiveram na vanguarda facilitam o avanço daqueles que vêm depois.
De certa forma, estamos de volta àquela outra observação feita por Hayek, ainda em 1945, em seu artigo O uso do conhecimento na sociedade. O conhecimento é descentralizado. O livre mercado cria incentivos para que aquelas pessoas que possuem informação especializada possam colocar esse conhecimento para usos lucrativos.
E, ao fazerem isso, todo o resto do mundo é gratuitamente beneficiado. A riqueza se espalha e se torna mais igual. Desde que não haja monopólios protegidos pelo estado, principalmente sobre ideias.
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Helio Beltrão
Publicado anteriormente em: cutt.ly/rbKZjne