A sociedade que renuncia à liberdade em troca de uma segurança temporária perde ambas
O livro O Caminho da Servidão, do economista austríaco Friedrich Hayek, publicado no ano de 1944, é considerado pelo crítico literário e biógrafo britânico Martin Seymour-Smith como um dos cem livros que mais influenciaram a humanidade em todos os tempos.
De fato, o livro é de uma sensatez impressionante e de uma reflexão imensurável. Alguns capítulos — como Por que os piores chegam ao poder?, Quem, a Quem? e O Fim da Verdade — poderiam, por si sós, estarem entre os escritos mais importantes dos últimos duzentos anos.
No entanto, é o capítulo Segurança e Liberdade que merece nossa atenção especial, pois parece ter sido escrito tendo em mente a atual sociedade brasileira, na qual muitos cidadãos possuem como meta de vida a estabilidade de emprego e de renda, ou mesmo se agarram a sofismas como “direito adquirido”, “reajustes obrigatórios” ou “adicional por tempo de serviço”.
E não, não se trata apenas do funcionalismo público. Mesmo na iniciativa privada encontramos esta mentalidade.
A estabilidade de alguns poucos vem à custa da liberdade de todo o resto
Não é desarrazoado dizer que todos nós gostaríamos de ter estabilidade econômica, isto é, uma renda periódica que nos garantisse uma qualidade de vida adequada com a qual já estamos acostumados, de forma que pudéssemos pagar por alimentação, moradia, saúde e outras quesitos sem se preocupar em dar satisfação ao chefe, sem ter de trabalhar incansavelmente todos os dias e sem ter de ficar preocupado sem saber se seremos demitidos ou não.
A pergunta que se faz, então, é: seria possível uma sociedade em que todos os cidadãos tenham essa tão sonhada estabilidade econômica?
É totalmente desejável um indivíduo se esforçar para buscar a segurança econômica limitada, isto é, trabalhar, empreender e poupar durante um determinado período de tempo até acumular um patrimônio que lhe permita ter razoável previsibilidade de que poderá viver até o resto de sua vida sem trabalhar ou, pelo menos, sem trabalhar o tanto que você trabalhou até formar esse determinado patrimônio.
Logicamente, essa segurança econômica será limitada: se você viver mais do que previa ou se seu patrimônio não for bem administrado, todos os seus recursos poderão se exaurir e você, novamente, terá de trabalhar para sobreviver, sob insegurança e incerteza.
Já a estabilidade econômica ilimitada não pode ser obtida por meio do trabalho, empreendedorismo e poupança. Sempre haverá o risco de você perder seu patrimônio acumulado se ele não for bem administrado, independentemente do valor.
Por outro lado, a atual sociedade brasileira é acostumada a conceder segurança econômica ilimitada a determinados servidores públicos, como juízes, promotores, procuradores, auditores fiscais, militares, professores, profissionais da saúde e outros.
A concessão dessa segurança ilimitada é feita por meio de lei, isto é, utiliza-se da força ou ameaça da força sobre outras pessoas para que esses servidores públicos tenham sua estabilidade garantida.
O salário dos servidores públicos é pago por meio da arrecadação de impostos, isto é, retira-se o dinheiro produzido pelos demais membros da sociedade com o objetivo de garantir renda estável a esses servidores.
Contudo, a renda desses outros membros da sociedade não é estável.
Por exemplo, não é possível acertar com precisão quais serão a receita e lucros futuros obtidos por um restaurante. Isso dependerá de se os clientes continuarão gostando da comida servida, dependerá do preço da carne, do arroz e de diversos outros fatores. Portanto, o valor pago de impostos por um restaurante ao estado será variável e incerto e o mesmo é válido para todas as outras empresas, independentemente do setor.
Desta forma, apesar de a despesa com a folha de pagamento do poder público garantir a estabilidade de salário e emprego a determinados servidores, a receita obtida pelo poder público sempre será instável.
Se houver frustração de receita, o estado terá de emitir dívida (afetando o custo do crédito por meio do aumento da taxa de juros), imprimir dinheiro (gerando inflação de preços), aumentar impostos (afetando a economia) ou atrasar outros pagamentos para garantir a estabilidade a esses servidores.
Todas essas ações geram instabilidade para quem trabalha no setor privado, que terá de rever suas estratégias de negócio, reduzir o endividamento, rever projeções de venda e custos, dentre outras providências.
Portanto, a estabilidade dos trabalhadores do setor público só pode ser obtida por meio do aumento da instabilidade dos trabalhadores do setor privado.
Tentar estabilidade de renda no setor privado também é deletério
Entretanto, a lei brasileira não se limita a impor segurança ilimitada para determinados grupos de servidores públicos; ela também tenta impor segurança limitada para trabalhadores da iniciativa privada.
A legislação trabalhista, por meio do seguro-desemprego, FGTS, multa sobre o saldo do FGTS, salário-família e outros programas sociais, tem como objetivo garantir que o trabalhador tenha uma renda mínima caso perca seu emprego, ou seja, trata-se da concessão, por meio da lei, de certa segurança limitada.
O fato de uma pessoa ter grande redução de seus rendimentos de uma hora para outra certamente causa amarga frustração, desestabiliza a família e ofende o senso comum de justiça. Dessa forma, a reivindicação das pessoas assim prejudicadas, de que o estado intervenha a seu favor, ganha amplo apoio popular e simpatia. No Brasil, isso se reflete nos programas sociais citados no parágrafo anterior.
Contudo, se, por um lado, queremos estabilidade de renda e emprego, por outro lado, somos totalmente dinâmicos e instáveis no que tange ao nosso comportamento como consumidores. Queremos sempre o melhor e mais barato produto ou serviço. Se em um supermercado a carne está R$70/kilo e no outro R$50/kilo, da mesma qualidade, não hesitamos em comprar no segundo. Sempre quando um novo produto melhor e mais barato surge, abandonamos o velho, sem dó, nem remorso.
É estranho o fato de as pessoas agirem com complacência e compaixão quando algum amigo perde o emprego, sem perceber que provavelmente foi a mudança no seu padrão de consumo que levou à demissão de seu amigo.
A estabilidade no consumo é evidentemente impossível. Somos seres ativos e dinâmicos, estamos sempre querendo melhorar a nossa qualidade de vida ou, pelo menos, não piorar. Sempre iremos agir de forma a escolher um produto ou serviço que satisfaça as nossas necessidades e custe o menor valor possível. Quando uma nova empresa entra no mercado, oferecendo produtos mais baratos e de melhor qualidade, a empresa ultrapassada sofre prejuízos e tem de demitir seus trabalhadores.
Mesmo dentro de uma empresa lucrativa, se o trabalhador não obtém sucesso ao servir ao consumidor, ele poderá ser demitido. Quem o demite, em última instância, não é o seu chefe, mas sim os consumidores, que, votando por meio de cada real gasto, julgaram que aquele determinado trabalhador não é apto para a função.
Portanto, dado que não existe estabilidade no consumo, é impossível garantir estabilidade na renda e no emprego.
Quando essa estabilidade é concedida a alguns privilegiados, todos os demais sofrem o prejuízo de sua consequência, isto é, sofrem mais instabilidade no emprego, menor renda e menos disponibilidade de produtos e serviços para consumo.
O exemplo brasileiro evidencia a afirmação acima. Ainda antes da pandemia, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) divulgada em março de 2020, a força de trabalho no Brasil era de 100 milhões de pessoas. Tínhamos no setor privado aproximadamente 33,6 milhões de pessoas com carteira assinada e 38 milhões de trabalhadores informais. Estes incluem desde os trabalhadores sem carteira assinada (11,6 milhões) até trabalhadores por conta própria (24,5 milhões).
Os grupos acima, quando somados à força de trabalho desocupada no mesmo período, equivalente a 12,3 milhões de desempregados, significam 84 milhões de brasileiros que lutam no dia a dia para procurar ou manter seus empregos e sua renda (veja todos os números aqui).
Já os trabalhadores do setor público, quando somadas as diferentes esferas de governo, civis e militares, são aproximadamente 11,4 milhões.
Ou seja, de 100 milhões de pessoas, 12 milhões são servidores públicos, ou seja, possuem segurança ilimitada; 33 milhões são trabalhadores com carteira assinada, ou seja, possuem segurança limitada imposta pela lei; e os demais 55 milhões de brasileiros não possuem nenhuma segurança garantida pela lei, sendo que destes, 12,3 milhões estavam desempregados e 27 milhões recebiam abaixo de um salário mínimo. A estabilidade concedida a determinados grupos privilegiados levou grande parte da população brasileira ao desemprego ou subemprego.
A tentativa de impor segurança a determinados grupos por meio da lei tem como consequência inevitável aumentar a insegurança das pessoas que não foram contempladas pela legislação.
Liberdade e estabilidade são antagônicas
É impossível que uma sociedade garanta a estabilidade econômica para todos os seus cidadãos, pois isso significaria o fim da liberdade de escolha de consumo e de profissão.
Uma sociedade que tenta impor a estabilidade econômica, de renda e emprego, a todos os seus cidadãos só terá três possíveis destinos:
1) controle total de todas as decisões de todos os indivíduos pelo estado — ou seja, as pessoas não poderão escolher livremente o que consumir, qual profissão seguir, quanto poupar, em qual atividade investir e nem em qual região morar;
2) a informalização completa e um funcionamento à margem da lei — isto é, empresas irão atuar sem pagar impostos, sem seguir as regras determinadas pelo governo, funcionando sempre na clandestinidade, ou
3) uma mistura parcial entre 1 e 2.
Não tem como escapar destes cenários.
Não há dúvidas de que a legislação brasileira, ao tentar impor por meio da lei a segurança ilimitada a determinados servidores e a segurança limitada a determinados trabalhadores, fez com que o nosso país seguisse o terceiro destino.
A presciência de Hayek
Hayek já havia vislumbrado tudo isso. Em seu capítulo, ele afirma:
Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. […]
Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações.
Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da “estabilização” dos salários de determinadas categorias, pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.
Quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança para alguns, tanto maior se torna a insegurança de todos; maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos.
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Victor Cezarini e Raphael Werner
Publicado anteriormente em: cutt.ly/AnhPUmX