Foi ali que o império soviético começou a desmoronar
Já faz um bom tempo que a Polônia não frequenta os noticiários internacionais, e isso é sinal de que as coisas estão calmas nesta nação da Europa Central (eles não gostam de ser chamados de Leste Europeu).
No entanto, durante toda a década de 1980, a Polônia foi uma fábrica contínua de notícias. Foi o país mais expressivo e agitado por trás da Cortina de Ferro.
Hoje, a Polônia é uma vibrante economia de mercado, cujas condições de vida não estão distantes daquelas da Europa Ocidental. Os supermercados e as lojas de departamentos, que estão em todos os cantos, são repletos de bens variados e oriundos de todos os cantos do mundo. As cidades ostentam grandiosas e modernas edificações. Há até mesmo novas igrejas sendo construídas — algo proibido sob o regime comunista.
Todas as fachadas antigas e decrépitas da era comunista foram renovadas, e aquele antigo e lúgubre cinza foi substituído por cores mais vibrantes. Os problemas de transporte estão praticamente resolvidos. As rodovias são novas e modernas, e suplementam um excelente sistema ferroviário.
Restaurantes sofisticados, cafés badalados, e restaurantes para almoços prosaicos estão por todas as partes.
Se há 30 anos turistas estrangeiros eram algo raro até mesmo na bela Cracóvia e seus locais tombados pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, hoje você os vê rotineiramente nas principais cidades do país.
Os poloneses já se acostumaram a viver com todos os luxos que o capitalismo pode oferecer, como apartamentos e imóveis prontamente disponíveis. Bens como automóveis, televisores de plasma, smartphones, notebooks etc. estão disponíveis para todas as classes sociais.
Porém, as coisas eram totalmente distintas na década de 1980. Pronta disponibilidade de bens era algo inimaginável. Fartura era algo fictício. Penúria era a regra.
No aniversário de 30 anos do fim do, vale a pena fazermos uma breve viagem no tempo e voltarmos à Polônia da década de 80. A história não deve ser esquecida.
O cenário de fundo
Ao final da década de 1970, a economia polonesa estava em convulsão. O governo estava completamente endividado em decorrência de vários empréstimos externos, e, tendo de arrecadar os fundos necessários para pagar os encargos de sua dívida, ele optou por aumentar os preços de vários produtos. Isso foi o estopim para uma série de greves de trabalhadores.
Um pouco antes, em 1978, um papa polonês foi eleito em Roma. Seria o primeiro papa não-italiano desde Adriano VI, que morreu em 1523. Em junho de 1979, João Paulo II (Karol Józef Wojtyla) fez sua primeira visita à Polônia já como sumo pontífice. Celebrou uma missa na Praça da Vitória perante uma multidão de 3 milhões de poloneses.
Ali estava um homem que havia sido criado sob um regime nazista e que havia sobrevivido ao comunismo. Já não era segredo para ninguém que aquele papa desprezava o comunismo e iria fazer de tudo para solapar este regime na Polônia.
Esta viagem à sua Polônia natal — um franco desafio ao regime comunista — elevou o espírito da nação, algo que culminaria, no ano seguinte, na formação de um movimento abertamente anticomunista formado por trabalhadores e operários.
Tudo começou com uma greve geral em Lublin, em julho de 1980. Mas foi em meados de agosto que manifestações no estaleiro de Gdansk deram origem a uma série de greves que praticamente paralisaram toda a costa báltica. Pela primeira vez na história, quase todas as minas de carvão da região da Silésia foram fechadas.
Os representantes dos grevistas no estaleiro de Gdansk, liderados por um eletricista chamado Lech Walesa, assinaram o Acordo de Gdansk, prometendo ao governo que acabariam com as greves se o governo socialista garantisse o direito dos trabalhadores de formar sindicatos independentes e também chancelasse o direito à greve.
Após um bem-sucedido acordo — nesta que havia sido a maior confrontação trabalhista da história da Polônia —, movimentos sindicais organizados começaram a ser formar ao longo de todo o país.
No dia 17 de setembro de 1980, todos os sindicatos se reuniram em Gdansk e decidiram formar uma única organização sindical nacional chamada de Solidariedade.
Tal liberdade, obviamente, desagradou Moscou, que, em fevereiro de 1981, elevou o general Wojciech Jaruzelski, então Ministro da Defesa, ao cargo de primeiro-ministro. Veterano da Segunda Guerra, sua prioridade era recorrer à força bruta para arrefecer as manifestações que irrompiam por todos os cantos do país.
Já em março de 1981, na cidade de Bydgoszcz, três ativistas foram espancados pela polícia secreta. Como consequência, uma “greve de advertência” comandada pelo Solidariedade — que a esta altura já era formado por 9,5 milhões de poloneses — voltou a paralisar todo o país, e com o apoio maciço da população. Os soviéticos já estavam perdendo a paciência.
Em setembro de 1981, em Gdansk, o Solidariedade fez o seu primeiro congresso nacional, e Walesa foi eleito líder nacional do movimento e imediatamente fez um apelo a todos os outros países do Leste Europeu para que seguissem os mesmos passos do Solidariedade.
Para Moscou, o congresso havia sido uma “uma orgia anti-socialista e anti-soviética“. Os líderes comunistas da Polônia, comandados por Jaruzelski, estavam prontos para utilizar de violência para conter o movimento.
Em outubro, Jaruzelski foi nomeado Primeiro-Secretário do Partido Comunista, uma ascensão atípica para um militar no mundo comunista. Jaruzelski exigiu que o parlamento proibisse as greves e o concedesse poderes extraordinários.
Em dezembro, o regime declarou lei marcial, e as tropas paramilitares ZOMO foram utilizadas para esmagar o Solidariedade. Praticamente todos os líderes locais e vários intelectuais afiliados ao movimento foram detidos e encarcerados. Nove foram assassinados na mina de Wujek. Após este ataque do governo, os agitos no país diminuíram. Embora reduzido a apenas alguns poucos milhares, o Solidariedade continuou na ativa, só que agora clandestinamente.
A rotina dos poloneses
O controle do Partido Comunista parecia inquebrantável. Tudo indicava que a Polônia ainda teria de viver sob este regime por vários anos vindouros.
Mas como era a vida sob este regime? Quais eram as características desta rotina que fizeram com que a população polonesa ansiasse tanto por uma mudança?
O padrão de vida geral da população era desolador, assim como nos outros países sob a esfera soviética. A combinação entre escassez geral de produtos e métodos de distribuição totalmente ineficientes fazia com que o simples ato de ir às compras em busca de produtos básicos fosse uma experiência agonizante — mesmo quando havia produtos nas prateleiras.
Açougue em Varsóvia, 1982
Os bens de consumo se limitavam quase que exclusivamente a produtos de baixa qualidade fabricados no Leste Europeu. Simplesmente não havia produtos ocidentais, exceto nas lojas especiais da Pewex, que aceitavam apenas dólar ou marco alemão, e a preços muito acima das posses de um polonês médio.
Com a imposição da Lei Marcial, as coisas pioraram bastante. Longas filas se formavam quando produtos essenciais — como papel higiênico, xampu, lâmpadas, chá, café, utensílios domésticos, queijo, guardanapos, sapatos e roupas íntimas — apareciam nas lojas. O simples ato de fazer compras era um exercício diário que envolvia perambular pela cidade à procura de alguma loja que tivesse estoques e, caso a procura fosse bem-sucedida, entrar em uma longa fila de espera.
E, dado que a maioria das mulheres polonesas tinha um emprego, o fardo extra de ter de fazer compras em tais condições era enorme, gerando uma grande taxa de absenteísmo e significativas dificuldades em cuidar dos filhos e em dar conta das tarefas domiciliares.
Um polonês jamais saía de casa sem estar carregando uma sacola de compras. Vai que inesperadamente ele encontrasse uma lojinha com produtos à venda e ele tivesse a rara oportunidade de poder comprar alguma coisa…
Em Varsóvia, a situação era menos desesperadora. Como o Partido Comunista tinha suas bases na capital, ele conseguia manipular as coisas de modo a garantir um suprimento mais generoso para a cidade. No entanto, em uma cidade mais afastada — como Breslávia (ou Wroclaw), que é grande e está localizada no sudoeste da Polônia —, a situação era igual à do resto do país. Uma ida ao Centrum, que então era a maior loja de departamentos da cidade, era algo que hoje parece um pesadelo.
Havia pouquíssimos produtos disponíveis e, mesmo assim, uma multidão de pessoas se aglomerava nos corredores. Filas de centenas de pessoas se formavam em frente aos poucos balcões que ainda tinham produtos disponíveis. Aquilo que em outras épocas foi a seção de tecidos da loja havia se transformado em um mar de vazias e inúteis mesas de medidas. Seis ou sete ternos amarfanhados estavam disponíveis na seção masculina em meio a filas de cabides vazios. A seção de esportes tinha apenas dois itens: pneus de bicicleta e botas de ski.
Cartazes escritos à mão ao longo dos corredores da loja ilustravam a triste situação. Na seção de sapatos masculinos, onde em outras épocas havia centenas de diferentes pares e agora estava sempre vazia, um cartaz dizia que “149 pares serão vendidos hoje”. Outro cartaz anunciava que “Nenhum tapete será vendido hoje”.
Em frente aos poucos aspiradores de pó ainda disponíveis na seção de eletrodomésticos, um cartaz dizia “Somente para Agricultores”. O governo vinha tentando motivar os agricultores a produzir mais comida, e imaginou que poderia criar tal estímulo reservando somente para eles os bens de consumo mais desejáveis.
Em determinadas ocasiões, as pessoas eram obrigadas a efetuar grandes façanhas para obter itens totalmente simples. Quando alguma loja anunciava que estava vendendo máquinas de costura, pessoas de todos os cantos da Breslávia corriam para lá. De início, era necessário ficar um dia e meio em pé na fila apenas para colocar seu nome em uma lista de compradores interessados. Depois, durante três ou quatro dias consecutivos, você tinha de ir à loja três vezes por dia apenas para estar presente à chamada que os burocratas faziam para verificar os nomes da lista. Cumprida esta tarefa, todos eram instruídos a voltar dali a duas semanas, que seria quando as máquinas estariam disponíveis — e ainda assim não havia nenhuma garantia de que as pessoas na lista realmente conseguiriam uma máquina de costurar.
Era comum alguns produtos irem parar nas mãos de amigos do burocrata encarregado de administrar a loja. Ou nas mãos de alguns membros do Partido.
Porém, dentre todos os martírios e provações que o consumidor polonês tinha de enfrentar, a busca por comida certamente era o mais humilhante e deprimente de todos. Um popular supermercado da Breslávia, que gozava a reputação de estar sempre bem suprido, tinha em suas prateleiras pão, biscoito-de-água-e-sal, dois tipos de pimenta, sal, farinha, macarrão, picles, açúcar, latas de ervilha, e água mineral. A seção de hortifruti tinha batatas, cebolas, beterrabas, cenouras, alho e alface estragada. A seção de laticínios tinha queijo branco e ovos. Carne era disponibilizada apenas para quem apresentasse todos os devidos cartões de racionamento. Este era todo o estoque do supermercado.
Quando chegava algum carregamento de coisas mais saborosas, como geléia, iogurte ou pudim, tudo se esgotava em menos de uma hora. Em determinadas ocasiões, se você madrugasse em frente à porta do supermercado e estivesse com sorte, conseguiria comprar um pouco de leite.
Mercado em Grójek, 1982
Quem tinha mais tempo disponível podia perambular pela cidade à procura de lojas menores que porventura vendessem alguns itens adicionais. Havia pequenas feiras ao ar livre que vendiam alguns vegetais. O difícil era conseguir criar uma dieta mais apetitosa e variada tendo pouquíssimas opções. Frutas, em especial, eram um problema. As únicas que estavam sempre à venda eram as maçãs. De vez em quando, surgiam alguns limões. Laranjas e bananas eram importadas somente em feriados.
Comprar gasolina era outra dor de cabeça. Os consumidores iam ao posto, passavam o dia todo dentro do carro esperando na fila, deixavam o carro lá durante a noite, voltavam no dia seguinte e continuavam na fila, até o momento em que conseguissem um pouco de gasolina. E isso se o posto de gasolina ainda estivesse operante no dia seguinte — era comum eles simplesmente fecharem da noite para o dia e não mais abrirem.
A opressão diária não terminava aí. A escassez de apartamentos levava os jovens à beira do desespero, pois tinham de esperar 10 anos ou mais até o governo disponibilizar um mísero espaço em um apartamento apertado. Casais de meia idade e com filhos ainda moravam com os pais enquanto aguardavam seus nomes serem chamados na lista de espera dos apartamentos. Por outro lado, quem se filiava ao Partido rapidamente conseguia um alojamento.
As construções eram uniformemente funcionais, cinzas, sombrias, monótonas e repulsivas. Vários prédios começavam a se esfacelar tão logo ficavam prontos. O uso do carvão como fonte de energia jogava uma película escura sobre as cidades, tornando-as ainda mais melancólicas.
O transporte público era apenas utilizável, e isso já bastava para que ônibus, bondes e trens estivessem sempre entupidos de gente. A lista de espera para comprar um carro demorava anos e o automóvel quase sempre era um exíguo e fraco Fiat polonês. Os limpadores de pára-brisa tinham de ser trancados dentro do carro, pois eram o alvo preferencial dos ladrões. Acessórios automotivos, por serem muito raros, eram muito valiosos na Polônia.
Uma coisa, no entanto, era verdade: os países do bloco soviético usufruíam pleno emprego. Bom, “usufruíam” é um termo incorreto. Quando você trabalha muito e não pode comprar nada, ou não tem a liberdade de usar os proventos do seu trabalho, você vive sob um regime de semi-escravidão. Na Polônia, o pleno emprego produzia apenas um crônico excesso de mão-de-obra mal paga e pessimamente utilizada. Praticamente todos os empregos eram enfadonhos e frustrantes.
Os gerentes das lojas e as pessoas que trabalhavam em restaurantes e no sistema de transporte simplesmente não tinham nenhum incentivo para serem solícitos ou mesmo gentis com os clientes. O cliente era apenas um estorvo, e eles não ganhavam nada nesta interação. O serviço prestado era ou ríspido ou apático.
Profissionais de todas as áreas tinham de lidar com a escassez de equipamentos. Professores da prestigiosa universidade técnica da Breslávia zombavam da ideia de que conseguiriam fazer alguma pesquisa séria na Polônia. Eles passavam todo o seu tempo livre escrevendo propostas para serem aceitos em universidades ocidentais, onde havia ampla disponibilidade de materiais e equipamentos sofisticados.
A burocracia paralisava todas as transações, e impossibilitava até os mais simples pedidos. Viajar para o exterior era algo extremamente restringido. Televisão, rádio e mídia impressa eram, obviamente, atividades efetuadas exclusivamente por pessoas sob o controle do Partido, dentro da Polônia ou em algum outro lugar dentro da esfera soviética.
A lei marcial impôs restrições ainda maiores. Os passaportes foram universalmente cancelados, de modo que nenhum polonês podia viajar ao exterior. Durante os primeiros meses da lei marcial, os poloneses não podiam nem sequer viajar entre cidades da Polônia sem a devida autorização do governo. Cartas sempre eram entregues abertas, amassadas dentro de sacos plásticos e com um carimbo escrito “Censurado”. Quando você discava um número no telefone, a primeira coisa que você ouvia era uma gravação repetindo “conversa monitorada, conversa monitorada”.
O exército assumiu o controle de toda a radiodifusão, e a programação da TV se resumia majoritariamente a filmes russos sobre a Segunda Guerra Mundial. Âncoras de jornais foram substituídos por soldados uniformizados que mecanicamente liam as notícias diárias. E as notícias eram sempre as mesmas: o Solidariedade havia destruído a economia; o exército estava se esforçando para recolocar o país no lugar; as coisas estavam visivelmente melhorando.
Obviamente, e ao contrário dos ocidentais de hoje, ninguém acreditava em nada do que dizia a mídia.
A sucessão de eventos
Após a imposição da lei marcial em dezembro de 1981 e a maciça utilização do exército e das tropas paramilitares ZOMO para esmagar o Solidariedade, o número de afiliados ao movimento caiu de 9,5 milhões para apenas alguns poucos milhares. Os agitos no país diminuíram sobremaneira, mas continuaram. O Solidariedade continuou na ativa, só que agora clandestinamente.
Após ter conseguido impor ao menos uma aparência de estabilidade, o regime polonês começou a relaxar a lei marcial. Ao longo do tempo, a lei foi sendo revogada em várias etapas.
Em dezembro de 1982, a lei marcial foi suspensa e um pequeno número de prisioneiros políticos, dentre eles Walesa, foi libertado. Embora a lei marcial só tenha sido formalmente abolida em julho de 1983, e uma anistia parcial tenha sido promulgada, várias centenas de prisioneiros políticos continuaram encarcerados.
Tornou-se mundialmente famoso o caso de Jerzy Popieluszko, um popular padre defensor do Solidariedade, que foi sequestrado e assassinado pelo serviço de segurança do governo — o Sluzba Bezpieczenstwa — em outubro de 1984.
A partir daí, os fenômenos de resistência na Polônia começaram a ser influenciados pela postura reformista de Mikhail Gorbachev na União Soviética. Em setembro de 1986, uma anistia geral foi declarada e o governo libertou quase todos os prisioneiros políticos.
No entanto, as autoridades continuaram perseguindo os dissidentes e todos os ativistas do Solidariedade.
Já estava mais do que óbvio que os esforços do regime para organizar a sociedade de cima para baixo haviam fracassado completamente. Com a crise econômica agravada e todas as instituições sem funcionar, a clandestina resistência anti-comunista foi ganhando um número crescente de adeptos.
A Resistência
Testemunhei ao vivo estes acontecimentos. Em novembro de 1986, passei 10 dias vivendo entre os clandestinos do Solidariedade e do Liberdade e Paz, um grupo formado por jovens.
Durante esta minha visita, aprendi que, cinco anos após o início dos violentos ataques desfechados pelo governo contra os movimentos de resistência, os poloneses haviam aprendido fabulosos truques para ludibriar e se esquivar do regime de Jaruzelski, tudo de uma maneira que chega a desafiar a imaginação. A escassez total dos mais básicos produtos alimentares, a inflação de preços em dois dígitos, e uma poderosa polícia secreta não os impediram de criar formidáveis mercados negros e vigorosas instituições privadas, desde rádios e editoras de livros a até mesmo teatros e escolas. Tudo clandestinamente.
Wiktor Kulerski, um dos lideres do Solidariedade, já havia esboçado, alguns anos antes, um esquema sobre como seria a resistência polonesa. Escreveu ele:
Este movimento irá criar uma situação em que as autoridades irão controlar as lojas estatais, mas não o mercado; o emprego de trabalhadores, mas não seu meio de vida; a imprensa oficial, mas não a circulação de informações; as editoras, mas não as publicações; os correios e os telefones, mas não as comunicações; e o sistema escolar, mas não a educação.
Trinta e oito milhões de poloneses estavam menosprezando e ridicularizando o estado. Eles já haviam aprendido por experiência própria e dolorosa que, como bem havia dito o escritor e compositor dissidente Stefan Kisielewski (que havia sido preso e espancado por causa disso), “Socialismo é estupidez”.
Eles já estavam fartos daquilo tudo.
Em um jantar organizado secretamente, em minha homenagem, por uma organização clandestina de editores em Cracóvia, fiquei mesmerizado com a amplitude daquilo que meus anfitriões chamavam de “empreendimentos editoriais independentes”. Eles haviam traduzido, imprimido e editado várias obras “subversivas” de Alexander Solzhenitsyn, George Orwell, e até mesmo de Murray Rothbard e Ayn Rand.
“Onde vocês conseguem os papeis para imprimir tudo isso?”, perguntei. Um jovem polonês chamado Pawel respondeu: “De dois lugares: contrabandeamos do Ocidente e roubamos dos comunistas”.
Pawel explicou que havia vários empregados das casas editoriais do governo que eram simpáticos ao movimento de resistência. Eles frequentemente forneciam papeis para os movimentos clandestinos. E quando a barra estava realmente limpa — ou seja, sem nenhum agente estatal nas redondezas —, eles chegavam até mesmo a imprimir o material ilegal nas próprias impressoras do governo.
Todo este material era distribuído e circulava amplamente nos subterrâneos de Varsóvia.
Quando o governo soube, decidiu contra-atacar criando uma operação para confiscar os carros dos distribuidores deste material proibido. Para se proteger, os editores clandestinos criaram sua própria companhia de seguros (a qual eles chamaram de “Lloyd’s de Varsóvia”) para cobrir os custos do confisco de seus carros, papeis e materiais.
Perguntei àqueles editores como eu poderia ajudar. Curiosamente, eles já haviam planejado um pedido específico para mim. Eles me perguntaram se eu conseguiria arrecadar US$5.000 e enviar esse dinheiro para seus aliados exilados em Paris, os quais iriam utilizar esse dinheiro para financiar a tradução para o polonês e a impressão de várias cópias do clássico Liberdade para Escolher, de Milton Friedman. Dentre as minhas mais estimadas possessões está uma edição deste livro com uma dedicatória do ativista Wojciech Modelski com estas palavras: “Obrigado, Larry! Sem sua ajuda, não seria possível publicarmos este livro.”
Mas a minha história favorita desta minha visita à Polônia envolve um casal muito corajoso e intrépido, Zbigniew e Sofia Romaszewski. Eles haviam sido soltos da prisão fazia muito pouco tempo. O crime? Comandar uma popular estação de rádio clandestina.
Não aguentei e tive de perguntar: “Quando vocês estavam transmitindo, como sabiam se as pessoas estavam ouvindo?”
Sofia respondeu: “Tínhamos de estar constantemente mudando de lugar para que a polícia não nos capturasse. Por isso, só conseguíamos transmitir de oito a dez minutos de cada vez. Uma certa noite, fiz o seguinte pedido: se há alguém nos ouvindo, pisquem suas luzes para mostrar que acreditam na liberdade. E então fomos para a janela. Durante horas, toda Varsóvia ficou piscando”.
Poucos dias depois, fui preso, revistado nu e deportado.
O fim da tirania
Em fevereiro de 1988, já desesperado com a situação de suas finanças, o governo implementou um aumento generalizado de 110% nos preços de todos os bens da economia. Os protestos estudantis retornaram. O colapso econômico gerou uma série de greves ao redor do país em abril, maio e agosto. O governo se sentiu obrigado a negociar.
Com a indispensável mediação da Igreja Católica, contatos preliminares foram feitos entre o governo e membros do Solidariedade. Em setembro, o governo recorre a Lech Walesa para tentar negociar o fim das greves. No dia 18 de dezembro de 1988, o Solidariedade sai da ilegalidade.
No início de 1989, o general Wojciech Jaruzelski chegou a um acordo com Lech Walesa: os grupos políticos suprimidos seriam legalizados e eleições gerais seriam marcadas para o dia 4 de junho. O general não tinha alternativas. A Polônia, declarou ele, havia se tornado “ingovernável”.
E foi exatamente no dia 4 de junho de 1989 que a Polônia eletrizou o mundo ao fazer as primeiras eleições livres na Europa comunista. Ativistas anticomunistas (e, em vários casos, também anti-socialistas) surpreenderam seus conterrâneos: eles conquistaram 99 das 100 cadeiras no Senado e absolutamente todas as 161 cadeiras do Parlamento que o regime permitiu serem disputadas na eleição.
Tais resultados asseguraram que a guinada para a liberdade em todo o império soviético era definitiva e iria se intensificar até derrubar todos os ditadores e partidos comunistas, desde Berlim Oriental até Ulan Bator.
Em 1989, alguns dias após a queda do Muro de Berlim, a Revolução de Veludo estava em andamento na vizinha Tchecoslováquia. A Hungria havia aberto suas fronteiras para o Ocidente algumas semanas antes. O megalomaníaco Nicolai Ceausescu, da Romênia, seria fuzilado no Natal.
Mas foi a Polônia quem havia aberto o caminho.
Conclusão
A história da Polônia desde a imposição da lei marcial e do esmagamento do Solidariedade em dezembro de 1981 até as gloriosas eleições de 1989 não é a saga de um povo pessimista, derrotista ou submisso. Ao contrário: trata-se de uma notável evidência do desejo humano de ser livre.
Embora os três poderosos líderes do Reino Unido, dos EUA e do Vaticano (Thatcher, Reagan e João Paulo II) tenham ajudado imensamente no processo da desintegração comunista, estes mesmos líderes correta e repetidamente aplaudiram e elogiaram o espírito desafiador dos poloneses. “O povo da Polônia”, declarou Reagan, “está nos dando um imperecível exemplo de coragem e devoção aos valores da liberdade contra uma violenta e implacável oposição. . . . A tocha da liberdade é quente. Ela aquece aqueles que a mantêm lá no alto e queima aqueles que tentam apagá-la.”
Um dos gigantes intelectuais da liberdade polonesa, o filósofo e historiador Leszek Kolakowski, que morreu em julho de 2009 aos 81 anos de idade, rotulou o marxismo de “a maior fantasia do nosso século”. Segundo ele, a brutalidade totalitária é uma inevitável consequência de uma concentração de poder.
Em uma entrevista concedida ao The New York Times em 2004, ele disse que “Supostamente, essa ideologia deveria moldar o pensamento das pessoas; no entanto, a partir de certo momento, ela se tornou tão fraca e tão ridícula, que ninguém mais acreditava nela. Nem os governados, nem os governantes.”
A todos aqueles milhões de poloneses que bravamente lutaram pela liberdade e que atiraram o socialismo na lata de lixo da história há 30 anos, muito obrigado por sua coragem, sua perseverança, sua visão e seu exemplo.
Cracóvia hoje
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Lawrence W. Reed
com a colaboração de Mateusz Machaj e Jakub Bozydar
Publicado anteriormente em: cutt.ly/dnQWDDn