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Os perigos do Negacionismo 2.0

Nesta semana, o Negacionismo ganhou uma versão 2.0. O governo parecia ter se rendido à importância da vacina e o discurso do ministro da Saúde está alinhado ao da maioria dos médicos. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro se movimentou algumas casas para trás ao anunciar, no famigerado cercadinho do Palácio do Alvorada, que um relatório do Tribunal de Contas da União mostraria que metade dos falecimentos registrados como decorrentes de Covid-19 deveriam ser atribuídos a outra causa mortis. A informação foi desmentida no mesmo dia pelo próprio TCU. Mas Bolsonaro voltou à carga ontem, em evento realizado na cidade de Anápolis, em Goiás. O presidente disse: “Se retirarmos as possíveis fraudes, vamos ter em 2020 o país como aquele com o menor número de mortes por milhão de habitante por causa da Covid”.

Os registros oficiais mostram que houve cerca de 194 000 mortes causadas pela pandemia no ano passado. É muita gente, mas o presidente continua pregando que há, entre essas vítimas, uma grande quantidade de falecimentos motivados por outras moléstias. Essa é uma desconfiança que muitos levantam. Entre esses desconfiados, todos conhecem um tio do primo da vizinha do amigo que morreu de ataque cardíaco e foi registrado como vítima de Covid-19.

Obviamente, pode haver fraudes nesse processo. Mas como explicamos então que tivemos, no ano passado em solo brasileiro, cerca de 200 000 mortes a mais que em 2019?

O tal relatório paralelo do TCU, evocado por Bolsonaro, leva em consideração que haveria uma média de crescimento das mortes no Brasil de 8,8 % entre 2016 e 2019. Por conta disso, cerca de 80 000 óbitos dos 194 000 teriam origem diferente que a Covid. Ocorre que, segundo reportagem do jornal O Globo publicada hoje, essa premissa está errada. Segundo o professor de epidemiologia da Universidade de São Paulo, Paulo Lotufo, a taxa média móvel de mortes no país foi de 1 % durante o período. Outro especialista ouvido pela reportagem, o sanitarista Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa, afirma que o auditor que produziu o relatório não oficial utilizou uma metodologia inapropriada. “Ele comparou número absoluto de mortes, enquanto o correto seria analisar a taxa de mortalidade ano a ano”, afirmou.

É a velha história. Se alguém torturar exaustivamente os números, chegará ao resultado desejado. O auditor, neste caso, parece ter seguido o enredo de uma piada que corre entre os contadores (quem adora contar essa anedota é o professor Stephen Charles Kanitz, também formado em contabilidade).

Um empresário, certo dia, resolveu chamar seus principais executivos para fazer uma pergunta simples: quanto é dois mais dois? Chama primeiro o diretor de operações. Atarefado e atrasado, ele fica irritado e responde: “Quatro”. A mesma questão é feita à pessoa responsável pela área financeira, que saca sua HP e calcula os juros pro-rata de um dia de aplicação. “Cerca de R$ 4,0006”. O empresário, então, faz a mesma pergunta ao representante da área de Recursos Humanos, que a interpreta como uma metáfora sobre o trabalho em equipe: “Pode ser muito mais que quatro”. Por fim, ele vai ao departamento de contabilidade e questiona: “Quanto é dois mais dois?”. O sujeito coça a cabeça e responde: “Quanto o senhor quer que dê?”.

Trabalhar para minar a credibilidade dos números divulgados tem como propósito reduzir a importância da pandemia. Convenhamos: mesmo que tivéssemos metade do número oficial de mortes, ainda assim seria uma catástrofe gigantesca. Além disso, se houvesse de fato uma fraude em escala industrial, por que ainda não surgiram provas contundentes sobre o suposto engodo?

Atualmente, estamos na marca de 480 000 óbitos. Em breve, teremos neste ano 300 000 mortos a mais que em 2020. Se existe um esquema fraudulento em curso, como é que ainda não houve nenhuma denúncia comprovada até agora? Apenas temos comentários, na linha “ouvi dizer que” ou então “meu cunhado conhece um médico que disse”.

Mas vamos imaginar, a título de especulação, que somente 50% das mortes sejam realmente provocadas pela Covid. Neste exato momento, estamos falando em 240 000 pessoas. Sete entre dez brasileiros conhecem alguém que morreu em decorrência da doença. Isso não pode ser relativizado ou minimizado. Estamos diante de uma situação gravíssima. Crianças e jovens, antes vastamente imunes, estão ficando doentes, pois as novas cepas são extremamente contagiosas. Não podemos nos enganar. Esta é a maior catástrofe sanitária dos últimos tempos e sua solução pede seriedade, comprometimento e iniciativa de nossas autoridades. Retroceder ao Negacionismo, a essa altura, é anabolizar um problema já gigantesco.

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