A natureza beligerante do presidente Jair Bolsonaro criou inimizades ao longo de sua carreira como parlamentar e ganhou proporções significativas desde que foi eleito presidente da República. Mesmo com um passado marcado pelos conflitos, alguns analistas, no início de 2019, acreditavam que Bolsonaro, uma vez instalado no Palácio do Planalto, iria arrefecer os ímpetos agressivos e gerenciar sua base de apoio com carinho.
Como se sabe, o presidente ficou brigando até com sua própria sombra nos primeiros meses de gestão. Antes de fazer um acordo com os representantes do Centrão, Bolsonaro conseguiu se desentender com alguns aliados de primeira ordem e foi perdendo apoio dentro do partido através do qual se elegeu. Nesta primeira fase, ele brigou com Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Luciano Bivar, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz e os falecidos Major Olímpio e Gustavo Bebbiano. O acordo com o Centrão tornou o cenário político mais estável e previsível – e o mandatário chegou a considerar uma volta ao ninho original de campanha, o PSL.
Nesta semana, contudo, Bolsonaro voltou a fustigar um aliado. Desta vez, é o deputado Luís Miranda, do DEM. Ele teria alertado Bolsonaro sobre irregularidades na compra da vacina Covaxin – e o presidente, aparentemente, não tomou nenhuma decisão para barrar essa compra. Miranda teve acesso a supostas irregularidades a partir de seu irmão, funcionário de carreira do Ministério da Saúde.
Vamos deixar de lado, por um instante, se as denúncias são verdadeiras ou não. Ou se as intenções do parlamentar são nobres ou torpes. Ou se ele é um deputado probo ou solerte.
Este episódio mostra que, mais uma vez, o presidente se desentendeu com aliados. E, como nos casos anteriores, passou a tratar Miranda como um inimigo mortal. Poucas horas após a tal denúncia, o ministro Onyx Lorenzoni foi escalado para distribuir sopapos em direção ao deputado. Ele disse: “A má fé é clara. A suspeita da falsificação é forte. A Polícia Federal e os peritos que vão determinar. O presidente já pediu […] a abertura da investigação de todos os fatos pela Polícia Federal”.
Onyx foi em frente. “Deputado Luís Miranda, Deus está vendo. Mas, o senhor não vai só se entender com Deus, vai se entender com a gente também. O senhor vai explicar e vai pagar pela irresponsabilidade, mau-caratismo, má fé, denunciação caluniosa e produção de provas falsas”, cutucou.
Novamente, alguém fiel a Bolsonaro cruzou a fronteira e aboletou-se na oposição. Miranda promete para hoje (25) a apresentação de documentos que comprovam as irregularidades denunciadas – mas haverá uma discussão interminável a respeito de tudo o que cerca esse caso, a começar pelo fato de que nunca existiu pagamento pelo primeiro lote das vacinas indianas (a compra deste imunizante, porém, foi encomendada sem que houvesse ainda aprovação formal da Anvisa – o principal argumento que os defensores de governo para justificar a demora na compra de doses vindas da Pfizer).
Miranda terá cacife para “implodir a República”, como ele mesmo disse?
Saberemos disso rapidamente. Mas é o caso de perguntar: faltando cerca de um ano e meio para a eleição, o presidente vai brigar com mais alguém? Essa mania, com certeza, não traz benefícios para quem deseja se reeleger, mas sem dúvida nenhuma produz grande prazer a quem está comprando briga com seus oponentes.
Bolsonaro, nos últimos meses, colocou um grande aliado no freezer – trata-se do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Ele será alvo de alguma desavença futura? Talvez não. Mourão poderia ser um ativo enorme ao lado do presidente. Mas, diante da frieza glacial vinda do Planalto, deverá permanecer afastado em relação ao núcleo do poder e não estará na chapa de reeleição.
Bolsonaro deve se preocupar com o hábito de transformar apoiadores em antagonistas. Não há pior oponente que um ex-amigo. Ele tem o dobro da raiva dos inimigos comuns e ainda por cima conhece o campo adversário como ninguém.