“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante”. Todos reconhecemos o início de nosso hino nacional, que faz menção justamente ao dia comemorado ontem. Formulados na chamada ordem indireta, esses primeiros versos, se traduzidos para a linguagem coloquial, poderiam ser escritos assim: “O brado (grito) retumbante de um povo heroico foi ouvido nas margens plácidas do (rio) Ipiranga”.
A política brasileira, especialmente nesses dias que cercaram a comemoração da Independência do país, lembra muito estas frases iniciais do Hino – muito comentadas, mas pouco compreendidas.
O primeiro ponto que atrapalha a compreensão deste cenário é o viés utilizado por dois grupos que antagonizam as tendências eleitorais. Pelas redes sociais, esses dois grupos autoproclamam-se vitoriosos após as manifestações de ontem. Um lado exalta o tamanho das multidões; o outro o diminui.
Há um terceiro grupo que procura enxergar o que ocorre, de fato, nos meandros políticos. Em menor número, essas pessoas tentam fazer uma leitura diferente e não se alinham com os extremos. Tenho um grande amigo que comentou ontem essa situação. “Parece que estou acompanhando a final de um campeonato e não torço para nenhum dos dois times”, disse ele.
Este meu amigo, empresário que votou em Jair Bolsonaro na última eleição e promete sufragar em branco no eventual segundo turno disputado pelo presidente e por Luiz Inácio Lula da Silva, está indignado. Para ele, o país enfrenta problemas seríssimos e ficamos discutindo assuntos que nada agregam à recuperação econômica ou à busca por um futuro melhor.
De fato, nunca vivemos o presente tanto como agora. A pauta de nossos assuntos é definida pelas declarações de Bolsonaro e os assuntos vão sendo trocados de acordo com o discurso do presidente e as postagens de sua militância. Nos últimos dias, por exemplo, nos preocupamos à toa com um possível conflito de manifestantes, dada a violência verbal que foi utilizada nas redes sociais.
Felizmente, nada de sério ocorreu. Mas, como havia comentado nesta semana, os dias que se seguirão ao Sete de Setembro serão tão importantes como a data da independência. Os discursos de Bolsonaro em Brasília e na avenida Paulista mostram que ele permanecerá em sua toada de deixar seus apoiadores motivados e em prontidão, especialmente quando diz que vai ignorar as decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
Aqui vale um parêntese. Vai ignorar como? Dificilmente Moraes endereçaria, a essa altura do campeonato, algum petardo em direção ao presidente. Assim sendo, o que pode fazer Bolsonaro? Ligar para a Polícia Federal e dar uma contraordem caso o juiz peça à PF alguma operação? Lembremos que o presidente chamou de “presos políticos” Roberto Jefferson e outros que foram encarcerados por despacho de Moraes – só que o pedido de prisão destes indivíduos partiu da Procuradoria Geral da República. Ou seja, o ministro acatou uma solicitação da PGR. Talvez não seja o caso de conversar com Augusto Aras, o procurador geral, antes de bater pura, única e simplesmente no STF?
Bolsonaro não parece ser uma pessoa muito inteligente. Mas, desta vez, foi esperto e escolheu um inimigo que não goza exatamente de um grande prestígio popular. Estamos falando do Supremo e, em especial, do juiz Moraes. Dessa forma, ao bater sempre nessa mesma tecla, acaba criando simpatia até entre aqueles que discordam de seu governo, mas também desgostam de alguns ministros do Judiciário (o número de pessoas que se enquadra nessa categoria é expressivo).
De seu lado, Moraes parece, às vezes, passar dos limites em certas decisões. Um exemplo disso é a iniciativa de registrar um boletim de ocorrência contra um rapaz que, aparentemente embriagado, falou mal dele em uma mesa de bar dentro do Clube Pinheiros, que fica em frente ao prédio onde mora. “Careca ladrão” foi um dos impropérios relatados por um vigilante da agremiação a um agente de segurança do ministro (ou seja, um B.O. foi lavrado na base do disse-que-me-disse). Embora Moraes tenha todo o direito de se revoltar com os xingamentos, esse é um país no qual se desanca políticos e autoridades em botequins desde os tempos do Império. Lutar contra esse hábito parece ser inútil e ruim para a imagem do ministro.
A estratégia de Bolsonaro é simples e fácil de entender: criar polêmicas e conflitos para manter os aliados mobilizados. O que fica difícil de entender, a exemplo da letra do Hino Nacional, é como as demais instituições vão reagir daqui para frente diante das bravatas bolsonaristas. Nunca vivemos tanto tempo dentro de um copo d’água que está em constante estado de tempestade. Também é algo inédito a capacidade de provocação do presidente aos demais poderes. Neste contexto, sua condição de ex-militar combinada a um discurso agressivo trazem à tona preocupações em relação à preservação da democracia (mas, até agora, as Forças Armadas se manifestaram publicamente pela defesa da Constituição).
Há três dúvidas daqui para frente. A primeira é se as autoridades militares vão continuar defendendo os valores democráticos (esperamos que sim). A segunda é sobre se o STF vai esticar ainda mais a corda. E, por fim, qual seria a opinião do presidente da Câmara, Arthur Lira, sobre os discursos de ontem. Mais uma vez, o presidente cutucou o STF e falou do voto impresso, dois temas que o presidente da Câmara aconselhou Bolsonaro a evitar.
Apesar de ser um aliado, Arthur Lira tem se mostrado irritado com a incapacidade do presidente em ouvir as vozes apaziguadoras do Centrão. Ele continuará a relevar a incontinência verbal de Bolsonaro?
Saberemos em breve a resposta para essa última questão. Lira é um personagem discreto nesta ribalta cheia de paixões – mas seu cargo permite que ele assuma um protagonismo quase que instantâneo. Basta que ele queira.