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O real digital seria prático e inclusivo, porém orwelliano

As moedas digitais são de grande interesse para os governos emissores

As fintechs e as big techs (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook) estão dedicando recursos multibilionários para retirar os bancos da intermediação dos meios de pagamento. 

Há muita demanda reprimida por uma forma imediata e segura de transferir dinheiro via Whatsapp, Facebook ou outras redes, nacional ou internacionalmente, independente dos bancos.

Os desbancarizados, embora em declínio, ainda são numerosos (34 milhões de pessoas no Brasil). A tecnologia privada viabiliza a inclusão destas pessoas no sistema monetário e ainda reduz custos. No ano passado, por exemplo, uma criptomoeda foi usada como veículo de remessa para ajuda humanitária na Venezuela no auge da pandemia.

O Mercado Livre acaba de anunciar um aplicativo para pagamentos digitais dedicado a criptomoedas. Começando pelo Brasil, clientes poderão comprar, vender e custodiar ‘criptos’ em suas carteiras digitais no MercadoPago

PayPal e a Venmo anunciaram iniciativas similares. 

O Facebook anunciou há um mês, na Money2020 em Las Vegas, o lançamento da carteira Novi, que utilizará como meio de pagamento o Pax Dollar, uma stablecoin.

Stablecoins são criptomoedas com lastro, em geral fixadas a uma moeda fiduciária, como o dólar. O Pax Dollar não é um dólar verdadeiro, mas um ‘token digital’ cuja empresa emissora se obriga a lastrear integralmente em dólares verdadeiros.

É a primeira vez que stablecoins estarão disponíveis em carteiras digitais prontas para consumo, fora do ecosistema paralelo de criptomoedas. 

O Mercado Livre tem cerca de 100 milhões de usuários e o Facebook, quase 3 bilhões ao redor do mundo. O próximo passo é que as criptomoedas e stablecoins dos usuários sejam utilizadas diretamente como forma de pagamento.

Quando as stablecoins (ou outras criptomoedas) passarem a ser utilizadas para pagamentos transfronteiriços, ocorrerá um salto de praticidade, com menor burocracia e custos de transação, pois não será necessário recorrer ao mercado de câmbio. 

Pela primeira vez, transações internacionais poderão ser realizadas praticamente sem atrito, instantaneamente, em um meio de pagamento de aceitação mundial.

Entram os governos — e o real digital

Muitos governos, é claro, estão receosos em permitir estas soluções privadas para pagamentos, e alegam uma mescla de motivos, alguns mais razoáveis que outros. Entretanto, caso reajam mal — regulando em excesso ou mesmo proibindo, por medo ou desconhecimento —, a própria moeda oficial poderá sofrer disrupção no futuro.

Para evitar que isso venha a ocorrer — e sabendo ser inevitável o avanço tecnológico e impossível abolir a tecnologia —, os Bancos Centrais foram impelidos a aprimorar seus próprios sistemas centralizados de pagamento, e a vislumbrar a versão digital de suas moedas oficiais.

Nada como a competição para melhorar serviços. 

No Brasil, o primeiro passo foi o Pix (“front end“), um êxito espetacular em termos de aceitação. O passo seguinte, o “back end“, é o real digital, que circulará pari passu às cédulas de real.

O problema é que a implantação do real digital é incrivelmente desafiadora. O real digital, se implementado como vem ocorrendo nas discussões preliminares das outras Central Banks Digital Currencies – CBDC(Moedas Digitais Emitidas por Bancos Centrais) no resto do mundo, incentivará depositantes a sacar dos bancos para suas carteiras digitais.

Afinal, uma moeda digital emitida pelo Banco Central é menos arriscada, mais barata e mais utilitária que um depósito em conta-corrente. Se você pode colocar sua moeda digital em uma carteira própria voltada para criptomoedas, e pode enviá-la para quem quiser por meio desta carteira, você não precisa do sistema bancário.

Consequentemente, a perda de depósitos causará uma redução imediata e forçada dos empréstimos dos bancos, causando um efeito transitório altamente recessivo.

Mas isso é o de menos. Há um outro lado sombrio. 

Entra Orwell

Em uma monografia publicada na conferência da Mont Pelerin Society neste mês (ainda não disponibilizada na internet), o economista Fernando Ulrich argumenta que o real digital significará o “absolutismo monetário”, permitindo data de validade para o seu dinheiro, bloqueios, taxas de juros negativas, fiscalização estatal de todas as transações, e outras violações.

De forma sucinta, eis um possível futuro:

1) Moedas em espécie deixarão de ser emitidas.

2) Qualquer pessoa com smartphone irá usar moeda digital.

3) O Banco Central terá controle absoluto sobre cada unidade de moeda digital. Com o blockchain — que grava toda e qualquer transação financeira — ele saberá, a todo momento, exatamente quem detém qual dígito em qual carteira. Ele saberá a exata quantia que cada indivíduo tem em suas carteiras digitais.

4) Consequentemente, o BC poderá fazer o que quiser. Poderá livremente criar moeda e enviá-la diretamente para a carteira eletrônica de quem ele quiser. Poderá pagar juros para quem quiser e cobrar juros de quem quiser. Poderá até punir os poupadores impondo juros negativos — ou seja, cobrando juros — a pessoas que tenham muita moeda parada em suas carteiras.

Uma moeda digital, na prática, permite que o Banco Central não mais dependa do sistema bancário para fazer sua política monetária. 

Mais: o Banco Central também adquire a capacidade de se tornar o executor da política fiscal. 

Por saber exatamente quem detém quantos dígitos, e por estar ciente de toda e qualquer transação monetária (que serão feitas via transferência de dígitos entre carteiras, e que ficam gravadas no blockchain), ele também terá o poder de tributar e redistribuir. Dinheiro que está na sua carteira poderá ser repentinamente enviado a outra carteira, ou simplesmente apagado. Poderá também ser multiplicado.

Consequentemente, os Bancos Centrais não só poderão se tornar os executores da política fiscal, como também poderão fazer uma política fiscal completamente independente das finanças dos governos. 

Será possível, por exemplo, a adoção de um sistema de várias taxas de juros, controlado inteiramente pelo Banco Central. Não mais serão os bancos tradicionais que irão determinar os juros de acordo com riscos ou disponibilidade de capital. Os Bancos Centrais poderão estipular o custo de capital que quiserem para qualquer indivíduo ou empresas que escolherem.

(Parêntese técnico: No arranjo atual, em termos puramente contábeis, para o Banco Central criar moeda, ele tem de comprar um título do governo. Ou seja, a criação de moeda tem como contrapartida a compra de uma dívida que vai para o balancete do Banco Central. Com uma moeda digital, isso acaba. A emissão de uma criptomoeda não gera nenhuma contra-partida contábil. Ao contrário da moeda fiduciária, que representa um passivo para o Banco Central, a moeda digital não é passivo de seu emissor.)

Os Bancos Centrais, em suma, terão o poder de criar e destruir moeda diretamente nas carteiras dos cidadãos, contornando completamente o sistema bancário e toda a burocracia estatal.

Este é um arranjo saído diretamente de um livro de George Orwell. Trata-se de um Big Brother em tempo real. Em posse de todos os dados da atividade em tempo real, os Bancos Centrais poderão implantar decisões de política monetária e fiscal visando a criar incentivos diretamente, tanto na forma de recompensa quanto de punição. Eles poderão afetar o comportamento humano de uma maneira bem mais sutil e discreta do que as tradicionais políticas monetária e fiscal. 

Para concluir

Se esse lado orwelliano do real digital — bem como o de qualquer moeda digital emitida por Bancos Centrais — irá ser adotado ou não é algo que apenas o futuro deixará claro. Por enquanto, temos apenas especulações.

Se a sua aposta é que sim, então você terá como única opção de proteção recorrer às criptomoedas privadas, as quais os governos não podem controlar.

É possível que o processo democrático impeça o avanço do real digital estatal (tanto o seu lado bom quanto o ruim), mas o fato é que a tecnologia de pagamentos privada não parará de evoluir. 

E ela será uma concorrência cada vez mais efetiva não só para a moeda estatal em sua versão atual, como também para as futuras moedas digitais emitidas por Bancos Centrais.

Se o Banco Central do Brasil tentar bloquear o avanço da tecnologia privada pela coerção e não melhorar seus serviços de moeda e pagamentos, o real poderá ser “disruptado” por obsolescência. Mas esta potencial concorrência, por outro lado, poderá acelerar ainda mais implantação do real digital — tanto o seu lado bom quanto o ruim.

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Por Helio Beltrão

Publicado anteriormente: https://cutt.ly/qTZjcXG

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