Um empresário encontrou casualmente um rapaz na cidade de Santa Rosa, no interior do Rio Grande do Sul, e ficou impressionado. O garoto era parecidíssimo com seu sócio – quase que uma cópia mais jovem. Intrigado, resolveu abordar o menino, que estava acompanhado pela mãe, entabulou uma conversa e acabou descobrindo como entrar em contato com os dois.
Quando encontrou seu sócio, disse que ele tinha de conhecer o tal rapaz, pois deveria ser seu filho, tamanha a semelhança. O sócio foi até à casa do garoto e desvendou o mistério. A mãe era uma antiga funcionária de sua família, que, ao ter engravidado, resolveu desaparecer – e ele era mesmo o pai do jovem.
Naquela época, o pai do menino já era casado e tinha filhos. Reuniu a família e contou o que havia acontecido. O menino foi acolhido e recebeu ajuda financeira. O garoto, que levava uma vida modestíssima (tirava o próprio sustento como músico, se apresentando em barzinhos), ganhou um lugar melhor para morar e começou a trabalhar na empresa da família, uma grande distribuidora de pneus da região.
Mais tarde, essa empresa transferiu sua sede de Santa Rosa para uma cidade próxima, Santa Maria. Nessa época, o guri disse ao pai que gostaria de ter um negócio relacionado ao mundo da música, que tinha bastante afinidade. Surgiu a ideia, então, a ideia de abrir uma boate, aproveitando que Santa Maria era uma localidade que abrigava muitos jovens. O local foi um sucesso instantâneo e lotava todos os dias, deixando o rapaz e seu pai orgulhosos daquele empreendimento.
Se estivéssemos em uma peça de ficção, a história terminaria aqui e todos seriam felizes para sempre. Mas esse caso pode ser considerado um dos maiores exemplos de reviravolta de narrativa (que os americanos chamam de “plot twist”) dos quais se tem notícia.
O menino em questão é um dos sócios da Boate Kiss, que quase nove anos atrás pegou fogo e matou 242 pessoas, além de ferir tantas outras. O que parecia ser um conto de fadas com final feliz virou um pesadelo que se arrasta há tempos. O rapaz virou um dos inimigos públicos da cidade e os negócios de seu pai foram severamente prejudicados.
Mas não se pode dizer que a tragédia tenha sido apenas uma fatalidade. O local tinha sérios problemas de segurança, como o revestimento de espuma tóxica que havia nas paredes (usado como isolamento acústico) e um sistema de combate ao fogo altamente inapropriado e ineficiente. Como sócio do local, o rapaz tem sua parcela de responsabilidade e seu destino (junto com o de três outros parceiros na boate) será definido em um julgamento que teve início na última quarta-feira e vai se estender por mais dez dias.
O acontecimento ganha contornos calamitosos porque ceifou vidas de jovens inocentes de forma totalmente macabra. Ninguém pode acusar os sócios de desejar a morte dos clientes – mas claramente houve negligência por parte de quem montou a boate. Há também outros responsáveis, como os idiotas que tiveram a infeliz ideia de soltar fogos de artifícios em um local fechado, o estopim da tragédia. Não se pode também esquecer do poder público, que deveria ter fiscalizado com um pente fino esse estabelecimento – e não o fez. A Kiss tinha um revestimento altamente inflamável (e tóxico) nas paredes e não possuía condições mínimas de combater um incêndio – além de um projeto arquitetônico que transformava a rota de fuga dos frequentadores em um verdadeiro labirinto.
É o tipo da situação que expõe um dos maiores medos de qualquer pai ou mãe – o de ser acordado no meio da madrugada com uma notícia trágica sobre seus filhos. Este caso precisa servir de exemplo para que a displicência em relação às regras de segurança não mais ocorra nesses locais de entretenimento jovem. E para que nunca mais exista negligência por parte dos empresários noturnos. É o mínimo que devemos aos 242 meninos e meninas que perderam a vida inutilmente – e que estariam ainda entre nós se regras básicas e simples tivessem sido observadas pelos donos da Boate Kiss.