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Artistas russos pegos no fogo cruzado do cancelamento cultural

Festivais de Cannes, de Veneza, Met, Filarmônica de Munique e universidade de Milão apelaram para o banimento

Mesmo nos dias mais sombrios da Guerra Fria, estrelas soviéticas da ópera, música erudita e balé circulavam regularmente pelo Ocidente em concorridas turnês, sem preocupações com espionagem, golpes de estado, invasões e guerras por procuração ditadas pelo Kremlin. Nem de longe era um mundo justo, mas havia alguma elegância e respeito pela excelência artística. Agora, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, tudo piorou. Além do previsível boicote econômico, há um bloqueio cultural tosco – além das asneiras de praxe.

Homenageada por Putin em 2008, a soprano Anna Netrebko perdeu o posto no Met de Nova Yok

A ira recaiu especialmente sobre dois superastros vistos como próximos de Vladimir Putin. O maestro Valery Gergiev, considerado um dos maiores de sua geração, foi destituído de seu cargo de chefe da prestigiosa Filarmônica de Munique, declarado persona non grata em muitos teatros e abandonado por seu agente. A soprano Anna Netrebko, rainha internacional da ópera, foi substituída nas apresentações de “Turandot”, de Puccini, prevista para abril e maio, bem como de “Don Carlo”, de Verdi, na próxima temporada, ambas no Metropolitan Opera, em Nova York. Tudo por não ter se pronunciado abertamente contra Putin. Seus contratos rendem estimados US$ 25 milhões anuais. Ela vive na Áustria, onde obteve cidadania, mas possui familiares vivendo na Rússia. Gergiev e Netrebko não são danos colaterais. Ainda que optando pelo silêncio, a pianista ucraniana Valentina Lisitsa também é alvo de críticas por ter condenado as intervenções dos Estados Unidos em sua terra natal. Ela é apoiadora de Putin e já havia sofrido quebras de contrato durante a invasão da Criméia, em 2014.

Com shows cancelados, patrocínios retirados e carreiras comprometidas, nada há de muito diferente com a fase inicial da perseguição fascista à dita Arte Degenerada – que incluía Picasso, Gauguin, Chagall, Kandinsky, Klee, Mondrian e o abrasileirado Segall – ou o macarthismo, que criou a Lista Negra de Hollywood – com Charles Chaplin, Luiz Buñuel e sir Richard Attenborough. “É uma guerra real. Esse combate atinge artistas que pagam por algo que não fizeram”, afirma o jornalista cultural especializado em música erudita, Irineu Perpétuo, que acompanha os desdobramentos.

Inquisição

A nova reação cultural – e seus devidos cancelamentos – tomou forma quando a organização do Festival de Cinema de Cannes (que ocorrerá de 17 a 28 de maio) divulgou, em 1º de março, que nenhuma delegação russa seria bem-vinda. No dia seguinte, o Festival de Veneza anunciou exibições gratuitas do filme “Reflecções”, de Valentin Vasyabivych. sobre o conflito na região de Donbass, na Ucrânia, em 2014. E que só aceitaria cineastas declaradamente opositores ao governo de Vladimir Putin. “La Biennale di Venezia não fechará suas portas para aqueles que defendem a liberdade de expressão e se manifestam contra a desprezível e inaceitável decisão de atacar um estado soberano e seu povo indefeso. Para aqueles que se opõem ao regime atual na Rússia sempre haverá lugar em suas exposições”. A atitude francesa foi uma grosseria, a italiana, tola. Na Rússia autoritária de Putin, uma nova lei permite encarcerar por até 15 anos qualquer um que protestar pela paz. Os franceses esqueceram o que foi a Ocupação, os italianos, o regime de Mussolini.

A partir daí começaram as demonstrações abertas de obscurantismo barato. Em 9 de março, a Orquestra Filarmônica de Cardiff, do País de Gales, anunciou ter removido obras do compositor russo Tchaikovsky (1840-1893) de seus próximos concertos. Logo o compositor homossexual reprimido que representa tudo o que Putin e seus apoiadores detestam. Felizmente é possível apreciar “O Lago dos Cisnes” em dezenas de filmes, incluindo um da Barbie, e a valsa “O Quebra-Nozes” é obrigatória em qualquer baile de debutantes por aí.

Dostoiévski quase virou vítima colateral na Itália

Na Itália, a Universidade de Milão-Bicocca cancelou um curso livre sobre o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o autor de “Os irmãos Karamazov”, “Crime e Castigo” e “O idiota”. Logo ele, que tem entre seus escritos “O grande inquisidor”, sobre um Jesus que acaba torturado ao voltar ao mundo na Espanha da Contrarreforma. O professor do curso, Paolo Nori, autor de “Ainda sangra – A Incrível Vida de Fiódor M. Dostoiévski” (sem tradução no Brasil), foi exato: “O que está acontecendo na Ucrânia é uma coisa horrível e eu sinto vontade de chorar só de pensar nisso”, disse. “O que está acontecendo na Itália hoje é ridículo: censurar um curso”. A instituição desistiu de barrar as aulas sobre um autor que foi condenado a morte em 1849 por ter lido livros proibidos que o ajudaram ser um dos gigantes da literatura universal. Foi uma estupidez tão descabida quanto desqualificar a obra de Machado de Assis por associar seu sobrenome com a devastação da Amazônia.

Sergei Loznitsa, diretor ucraniano que se demitiu da Academia Europeia de Cinema por sua resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, foi expulso da Academia de Cinema Ucraniana por expressar seu apoio aos cineastas russos. Em um comunicado divulgado no sábado (19), Loznitsa escreveu que havia sido expulso por ser, nas palavras da academia, “um cosmopolita”, acusado de ser insuficientemente leal ao seu país de origem. “Quando ouço hoje esses apelos para proibir os filmes russos, penso nesses (cineastas) que são boas pessoas. Eles são vítimas como nós desta agressão”, afirmou. Em 2018, Loznitsa dirigiu “Donbass” (2018), uma comédia de humor negro sobre os efeitos da propaganda política entre os moradores da região disputa. Ele também fez os documentários “Maidan” (2014), sobre os prostestos que derrubaram o governo pró-russo de Viktor Yanukovich, e “Processo”, com imagens de época das perseguições stalinistas na década de 1930.

Estrelas ofuscadas

Mas há os que conseguem protestar. Uma das bailarinas russas mais talentosas e admiradas de sua geração, Olga Smirnova, 30 anos, abandonou a prestigiosa trupe russa do Bolshoi após denunciar a guerra na Ucrânia, em um movimento que evoca as deserções das lendas do balé Rudolf Nureyev e Mikhail Baryshnikov durante a era soviética. Smirnova havia denunciado a invasão russa no início de março, dizendo que “não podemos ficar indiferentes a esta catástrofe global”. Sem um lar definitivo, já achou um ótimo emprego. Nesta quarta-feira (16), foi admitida oficialmente como “prima ballerina” do Balé Nacional Holandês, de Amsterdã. Ela foi a a primeira estrela russa a dar este passo desde o início da guerra – mas quase certamente as negociações já estavam em andamento.

Karina Samoylenko, bailarina do Teatro San Carlo, de Nápoles, filha de um russo e uma ucraniana, arrecada fundos

“Isso tudo é uma mistura séria de perseguição cultural e desrespeito, que não ajudará em nada os problemas atuais. Uma coisa é o conflito, a guerra, outra é a contribuição do homem para arte e cultura humana”, expõe Irineu Perpétuo. Nessa briga, melhor fizeram a meio-soprano russa Ekaterina Gubanova e a soprano ucraniana Liudmyla Monastyrska, que longe de suas casas em uma apresentação de “Aída”, na Itália, pediram paz abraçadas. Monastyrska vai substituir Netrebko no Met. Longe dos holofotes, Karina Samoylenko, do Teatro San Carlo, de Nápoles, filha de pai russo e mãe ucraniana, faz só o que consegue. Ela participa de uma campanha de arrecadação de fundos para os refugiados. É provável que esteja fazendo mais que os outros.

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