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Quando as vítimas também usavam farda

Mesmo com quase 7 mil presos, torturados e perseguidos na Ditadura, os militares esquecem como colegas do passado foram tratados

O comentário desdenhoso do presidente do Superior Tribunal Militar (STM), o ministro e general de exército Luís Carlos Gomes Mattos, que classificou como “notícias tendenciosas” para “atingir as Forças Armadas” a divulgação de 10 mil horas de áudios da corte sobre tortura de presos políticos na Ditadura Militar (1964-1985) é mais um caso de corporativismo, parcialismo histórico e irresponsabilidade. “Aconteceu aí durante a Páscoa e garanto que não estragou a Páscoa de ninguém. Porque a minha não estragou, garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós. Apenas a gente fica incomodado que vira e mexe não tem nada para buscar e resolvem rebuscar o passado.”

Proferida nesta terça-feira (19), na abertura da sessão do STM, a declaração do general critica a reportagem da jornalista Miriam Leitão, de O Globo e da GloboNews, que expôs farto material coletado pelo historiador Carlos Fico, da UFRJ. Captadas entre 1975 e 1985, as gravações mostram que integrantes da corte sabiam o que ocorria. Alguns se chocavam quando havia militares envolvidos, outros faziam comentários grosseiros. Em 24 de junho de 1977, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos (1910-1980), ministro do STM, deixou registrado: “Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes à tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.” Presa em abril de 1974, a militante do MR-8 sofreu choques elétricos na vagina por ordens de um certo Capitão Ubirajara, depois identificado como o delegado aposentado da Polícia Civil de São Paulo, Aparecido Laertes Calandra. Ele sempre negou tudo, mas foi reconhecido por seis vítimas.

Marechal sem honrarias

Ao fazer pouco do pedido, o general protege o passado de criminosos fardados – e civis – que agiram sob o escudo do estado e também conspurca o trabalho de colegas de tribunal, como o general Jordão Ramos, que foi ministro dos Transportes de Café Filho (1955) e comandante militar da Amazônia (1964-1965). Apoiador do Golpe, foi um dos primeiros generais a reconhecer os crimes contra presos políticos e pedir a volta da democracia. Considerado perigoso para a transição política, foi impedido pelo general presidente Ernesto Geisel (1907-1996) de assumir a presidência STM às vésperas da Anistia, indo à reserva.

De acordo com o livro “Militares e Política no Brasil”, o grupo social mais perseguido na Ditadura foi o pessoal da caserna. “Muita gente que acha que eles eram um bloco monolítico e que atuaram quase como um partido, um corpo único”, diz um dos autores, o pesquisador da Unesp, Paulo Ribeiro da Cunha. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou em 6.591 perseguidos, presos e torturados. Nessa conta estão os poucos que foram à luta armada, como capitão Carlos Lamarca (1937-1971), que desertou com um carregamento de fuzis para inaugurar uma desastrada guerrilha no Vale do Ribeira (SP), e o ex-sargento Onofre Pinto (1937-1974), expulso em 1964, preso, torturado, expulso do país e cujo corpo nunca apareceu.

Mas houve quem apenas fosse contra o arbítrio. O marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1984) foi sepultado sem honras militares por ter garantido a posse de Juscelino, em 1955, e ser contrário ao golpe de 64 quando na reserva. Como represália, teve um neto torturado para confessar que o avô seria um espião comunista. Católico praticante, conservador e anticomunista ferrenho, o general Pery Bevilacqua (1899-1990) – à esquerda na imagem – foi engolido. Contrário ao golpe de início, defendia que o poder voltasse aos civis o mais rápido possível. Acabou cassado com a decretação do AI-5, pouco antes de ir à reserva. Perto dos 80 anos, deixou registrado: “Será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução. A terapêutica revolucionária agrava os males do doente – a democracia -, quando não o mata. Mais de três quartos de século de vida me permitem essa conclusão definitiva”.

Nem todos se foram

A turma de 64 não poupou nem seus heróis. Piloto condecorado por suas ações na Itália, na 2ª Guerra, o brigadeiro Rui Moreira Lima (1919-2013) – centro da imagem – foi aposentado compulsoriamente e teve um filho torturado antes dele mesmo ser sequestrado e obrigado a ficar sem dormir. Ele escapou por interferência de amigos. Com outro veterano, o brigadeiro Francisco Teixeira (1909-1983) – à direita na imagem -, foi até pior. Nacionalista, foi preso, expulso, teve os direitos políticos cassados por 10 anos, perdendo a licença de pilotagem, o passaporte e foi considerado oficialmente morto – sua esposa recebia pensão. Impedido de trabalhar, virou professor de cursinho. Teixeira só era lembrado na troca de presidentes fardados, quando passava temporadas na cadeia. Seus filhos foram ameaçados e um deles acabou torturado. Sua casa acabou incendiada em circunstâncias suspeitas.

Nem todos tinham alta patente. O tenente-coronel Vicente Sylvestre (1939), da PM paulista, ficou 10 meses preso, entre 1975 e 1976, por ser simpatizante do Partido Comunista (PCB). Nesse período, experimentou a cadeira do dragão, onde recebia choques elétricos. Libertado, perdeu o direito de trabalhar formalmente no serviço público ou na iniciativa privada. Sua mulher recebia pensão como se ele tivesse morto. O fuzileiro Paulo Novaes Coutinho (1945) foi detido em 1964, aos 18 anos, ficou mais de um ano preso. Libertado, fugiu, vivendo incógnito por 15 anos para não ser preso. Essa parte da história precisaria ser resgatada pelos próprios militares. Ao contrário do que disse o vice-presidente e general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos), essa história infelizmente não passou e nem todos estão mortos.

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Comentários

Uma resposta

  1. Os milicos brasileiros são analfabetos. A ditadura civil-militar(1964/85) “deles” expulsou 1.313 militares,entre os quais 43 generais,240 coronéis,tenentes-coronéis e majores,292 capitães e tenentes,708 suboficiais e sargentos,30 soldados e marinheiros.

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