No folclore político brasileiro, há uma frase de enorme sabedoria: “O importante não é o fato, mas a versão”. A máxima, atribuída ao político mineiro Benedito Valadares, era na verdade de autoria de outro medalhão da política nacional, José Maria Alkmin, também nascido nas Minas Gerais. Depois de ouvir a própria frase ser creditada ao colega, Alkmin resolveu tirar satisfações com Valadares: “Benedito, eu inventei a história de que o importante não era o fato, mas a versão. Você se apropriou dela e agora todos acham que é sua”. O amigo, com um sorriso maroto, replicou: “Isso apenas prova que sua tese está certa, meu amigo”.
Essa historieta me veio à cabeça enquanto lia sobre o encontro entre o presidente Jair Bolsonaro e dezenas de embaixadores de outros países. Na reunião, o presidente descascou o método eleitoral brasileiro e, sempre sem provas, questionou a lisura das urnas eletrônicas.
Na prática, Bolsonaro está trabalhando para criar uma versão que se sobreponha ao fato. Se ganhar a eleição, conseguiu fazê-lo apesar da manipulação eleitoral. Se perder, foi roubado. Simples assim.
O presidente, desta forma, repete mais um dos passos dados pelo ex-mandatário americano, Donald Trump, durante sua campanha de 2020. Como se sabe, Trump resolveu utilizar naquele ano a mesma estratégia que o levou à Casa Branca em 2016 – mas o cenário político tinha sofrido uma forte transformação. Para Trump, no entanto, o caminho para a reeleição seria reforçar os alicerces conservadores de sua primeira campanha. Deu no que deu.
Bolsonaro repete esse mesmo caminho e se recusa a adotar um discurso mais apaziguador. Para o presidente, ele enfrenta um conluio que envolve mídia, Justiça e políticos oposicionistas – todos unidos para apeá-lo à força do poder. Seu assunto favorito, neste quesito, é acusar as urnas eletrônicas de fraude.
Como é um assunto de difícil domínio, há muitas pessoas inteligentes que se convenceram, como o presidente, de que as engenhocas que contabilizam os votos não são seguras e podem ser manipuladas.
Uma coisa, de fato, é certa. As urnas podem ser facilmente invadidas. Só que isso precisa ser feito na unha, agindo em um equipamento por vez. Como são mais de 500 000 urnas utilizadas nas datas eleitorais, imagine-se o tamanho do exército de hackers necessário para que um resultado majoritário seja alterado – além da impossibilidade de se fazer isso em sigilo. Convenhamos: seria algo absolutamente impossível.
Mas, dizem os teóricos da conspiração, a ação dos fraudadores se dá na soma final dos votos. Mais uma vez, é algo altamente improvável, já que o processo todo é vistoriado por todos os partidos e diversas entidades que representam a sociedade civil.
Uma das grandes broncas daqueles que enxergam fraude nas urnas é a impossibilidade de se fazer uma auditoria em cada uma delas. Mais uma vez, trata-se de um engano. É possível auditar todos os votos, que são atribuídos a códigos aleatórios, sem revelar os nomes dos eleitores. E por que isso acontece? Porque a Constituição estabelece o sigilo do voto.
O discurso de Bolsonaro é o de que sempre houve manipulação de resultados. Mas, neste caso, como é que ele ganhou o pleito em 2018? Ah, é que ele deveria ter vencido no primeiro turno… Mas a pergunta que não quer calar é: por que os fraudadores não agiram para evitar sua vitória no segundo turno? Já que o poder manipulatório é supremo, não faria sentido tirar sua vitória na primeira etapa e permiti-la na segunda.
O fato é que muitos embaixadores que compareceram ao encontro com Bolsonaro ficaram constrangidos com a exposição do presidente. Na prática, Bolsonaro – em sua tentativa de transformar uma versão em fato – passou a mensagem de que o Brasil não é um país sério e que suas instituições não funcionam, ficando a mercê de pilantras fraudadores que manipulam os resultados de suas eleições.