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Mises e Hayek: elevar um e ignorar o outro é injusto

Social-democracia, metodologia e o debate sobre a inviabilidade do socialismo estão no centro de seus trabalhos

É natural que tenhamos preferências, seja por economistas ou por quaisquer outros profissionais, nos campos da ciência, da música, da literatura, do jornalismo, do cinema, do teatro, da pintura, dos esportes etc.

No entanto, preferir um determinado autor a outro não deve implicar que esse “outro” não tenha talento ou valor, e — mais importante — que necessariamente tenha-se que escolher entre um e outro.

E digo mais: em todos esses campos, cada economista, músico, escritor, jornalista, ator ou pintor sempre é precedido por um ou mais pares: Mozart, por Bach; Utrillo, por Daubigny; Bill Evans, por Chopin; Poisson, por Pitágoras; Newton, por Kepler; Einstein, por Newton e assim por diante.

Isso significa, simplesmente, que o conhecimento é um processo cumulativo, um estoque que se renova permanentemente pela infusão das novidades que surgem com o passar do tempo. Na economia, as coisas não são diferentes, o que não quer dizer que todos os economistas de hoje influenciados pelos mesmos autores do passado tenham necessariamente que concordar entre si. Jean-Baptiste Say, por exemplo, foi lido por Keynes e Hayek, mas ambos interpretaram sua “lei” de forma radicalmente diferente; as leituras que Marx e John Stuart Mill fizeram de Adam Smith foram drasticamente díspares.

Indo agora ao ponto: por que deveríamos esperar que, no âmbito de uma escola de pensamento econômico, todos têm que concordar em todos os temas estudados pela escola? Acreditar que deve ser assim é pura ingenuidade, é desconhecer a tautologia de que cada indivíduo é único.

O objetivo deste pequeno artigo é o de apresentar — embora resumidamente — argumentos que acredito serem suficientes para negar que, no âmbito da Escola Austríaca, existiria uma “escolha” entre Mises e Hayek e que, ao endossar o pensamento de um deles, estaríamos obrigados a rejeitar o do outro. Pelo contrário: em vez de serem mutuamente excludentes, os dois grandes economistas são complementares, respeitando-se a individualidade de cada um deles.

1. Um grito silencioso

O oximoro “grito silencioso” ilustra bem a falsidade da escolha, uma vez que misesianos, hayekianos, kirznerianos, rothbardianos, lachmannianos  etc. são meta-etiquetas,  rótulos para caracterizar as contribuições desses autores. Temos necessariamente de levar em conta em que época e circunstâncias cada autor escreveu, a que público se dirigiu e que mensagem desejava comunicar. Ao fazermos isso, estaremos sendo prudentes e evitando fazer barulho por nada.

A teoria econômica, seja da Escola Austríaca ou de qualquer outra, não é um corpo unificado de pensamento, um sistema fechado, mas sim um sistema aberto, uma ordem espontânea. Tem razão o historiador britânico Quentin Skinner quando se refere a essa suposta necessidade de plena concordância entre os autores como a mitologia da coerência.  

 Na mesma linha, o Professor Peter Boettke sugere que a Economia Austríaca deve ser tratada como um programa de pesquisas progressivo:

Da forma como a enxergo, a Economia Austríaca contemporânea é um programa de pesquisas progressivo e não um corpo resolvido de pensamento e esse é o único caminho a seguir — o que significa que não devemos nos preocupar com a fidelidade às obras de qualquer pensador passado ou presente e sim em apenas buscar a verdade tal como a enxergarmos, acharmos e tomarmos ideias produtivas onde quer que possamos encontrá-las.

Essa visão contrapõe-se à de Hans Hermann Hoppe:

Minha tese é que a maior proeminência obtida por Hayek tem pouco ou nada a ver com suas ideias econômicas. Afinal, a diferença entre as ideias puramente econômicas de Mises e Hayek é mínima. Com efeito, a maioria das ideias econômicas associadas a Hayek foram originadas por Mises, e apenas este fato já faria com que Mises estivesse em um patamar superior ao de Hayek como economista.

Logo, o que realmente explica a maior proeminência de Hayek é a sua obra publicada principalmente na segunda metade de sua vida profissional, no campo da Filosofia Política — e é nesse campo que a diferença entre Hayek e Mises torna-se realmente notável, para não dizer impressionante.

Trata-se de uma visão radical e, a meu ver, prejudicial para a Escola Austríaca e creio que possa começar a ser refutada com duas perguntas simples: é proibido a um ex-aluno suplantar seu ex-professor? Um professor tem a obrigação de não ser superado por seu ex-aluno?

A respeito dessa controvérsia, o Professor Israel Kirzner, sábia e equilibradamente, chegou a advertir, em 1996, que:

Se desejamos preservar e construir sobre o legado misesiano, não devemos gerar confusão (tanto entre austríacos quanto entre seus oponentes), exagerando as diferenças entre Mises e Hayek, até o ponto em que as percepções compartilhadas centralmente por ambos ficam perigosamente obscurecidas.

2. A questão do método: duas (boas) cabeças, duas sentenças

Não podemos deixar de considerar que Mises foiinfluenciado pelo neokantismo, em suas principais vertentes alemãs, a saber: a Escola de Baden, fundamentada na axiologia e no culturalismo, com ênfase na lógica e na ciência (Rickert, Lask, Radbruch e Max Meyer) e a Escola de Marburgo, já no início do século XX, que rejeitava o naturalismo de Helmholtz e afirmava a importância do método transcendental (Hermann Cohen e Paul Natorp).  

A Escola de Marburgo procurava resgatar o Kant da razão-pura e das leis lógicas, enquanto que a Escola de Baden acentuava a razão-prática e as leis axiológicas e rejeitava o formalismo, em que o pensamento cria por si só o seu objeto. O neokantismo surgiu em oposição ao idealismo de Hegel e ao positivismo científico de Comte e J. S. Mill.

Mises, porém, também era simpático ao utilitarismo de Bentham (o que levou até mesmo Rothbard, que adotava postura mais aristotélica, a criticá-lo).

Já Hayek ao enfatizar a distinção entre conhecimento teórico e conhecimento das circunstâncias de tempo e lugar, separando o conhecimento subjetivo e a realidade que esse conhecimento precisa considerar, introduziu o falibilismo no conhecimento dos agentes, pelo qual as explicações econômicas devem ser guiadas pelo falsificacionismo de natureza popperiana.

Sendo assim, sustenta que a ciência econômica não deve se resumir à lógica das escolhas (ação humana) baseada somente nas decisões subjetivas dos agentes, como na praxiologia de Mises.Em suascríticas à epistemologia de Mises, foi também influenciado pelo utilitarismo de Mill, assim como pelo ceticismo de David Hume (1711-1776), pelo evolucionismo de Edmund Burke (1729-1797) e pela fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), um discípulo aplicado de Franz Brentano (1838-1917).

Para Hayek, os agentes econômicos erram e a teoria econômica deve investigar como a alocação de recursos depende do processo de correção desses erros, enquanto que, para Mises, a ciência econômica deve buscar a validade de seus resultados puramente pelo método dedutivo, a partir do exame das implicações lógicas do conceito seminal de ação humana proposital e voluntária.

Sendo assim, segundo alguns, a proposta de Hayek de se buscar formular teorias sobre aprendizado entraria em conflito com a abordagem misesiana.

Ocorre, porém, que o estudo da ação humana proposital se limita ao exame da lógica de cada indivíduo, ao passo que a ênfase na garantia da existência de coordenação nos mercados depende de considerações de natureza intersubjetivaPor causa disso, escreveu Fabio Barbieri:

O confinamento da análise à pura lógica da escolha levou o referido grupo de economistas austríacos [George Selgin e Joseph Salerno, entre outros] a rejeitar a contribuição de Hayek ao debate, refugiando-se em uma postura por vezes denominada subjetivismo radical.(p. 207)

Isso originou um debate interno sobre as contribuições de Mises e Hayek ao problema do cálculo: Yeager e Kirzner concordando com as objeções de Hayek ao socialismo, e Salerno, Rothbard, Hoppe e Herbener sustentando que a questão do cálculo proposta por Mises é diferente do problema do conhecimento de Hayek, que teria se desviado do argumento misesiano.

O repúdio à tese de Hayek deriva, no fundo, de sua crença no realismo e falibilismo popperiano e mais certas considerações sobre a complexidade dos fenômenos sociais, mas, como conclui Barbieri:

É curioso notar que a descrição do funcionamento dos mercados não diverge significativamente daquela apresentada por Hayek. Apenas as conseqüências metodológicas da contribuição deste último são impalatáveis para os defensores da metodologia de Mises.

A leitura atenta e o bom senso mostram que essa “escolha”não existe e que a expressão correta deve ser “Mises e Hayek”, pelo menos até que algum austríaco absolutamente genial consiga separar a questão do conhecimento proposta por Hayek de sua autêntica origem, que está, sem qualquer dúvida, em Mises.

Mas por que, até o presente, ninguém foi capaz de demonstrar irrefutavelmente qualquer conflito entre esses dois grandes pensadores? A resposta que me parece adequada é: porque todas as tentativas de fazer isso caíram no mesmo erro, o de repetir inconsciente ou explicitamente argumentos do próprio Hayek consentâneos com a visão de Mises, mas como se fossem fundamentações opostas a eles.

Sobre a praxiologia , Hayek diz, em uma entrevista:

O que eu vejo agora de forma mais clara é o problema de minha relação com Mises, que começou com meu artigo de 1937 sobre Economia e Conhecimento, o qual foi uma tentativa de persuadir o próprio Mises de que, quando ele afirmava que a teoria de mercado era a priori, ele estava errado; porque o que era a priori era apenas a lógica da ação individual, mas no momento em que você passa disso para a interação de muitas pessoas, você entra no campo empírico.

Nessas palavras ele não cita textualmente a praxiologia, mas, em todas as entrevistas sobre isso, deixou claro que seu desacordo com Mises era sobre a ideia de que a teoria de mercadoera a priori. Segundo Hayek, apenas a lógica da ação individualé apriorística, pois a lógica pura da escolha não é válida quando analisamos processos sociais e, por isso, eles deixariam de ser a priori.

Cumpre ressaltar que o desacordo de Hayek não é com a praxiologia em si, tanto que em um prefácio a dois artigos de Rothbard sobre a metodologia da economia ele escreveu:

Os problemas examinados sem dúvida não perderam nada de sua importância. Toda pessoa educada terá que, nos próximos anos, aprender a compreender o que é praxiologia e quais são seus métodos particulares. No tempo de Mises, era necessário explicar e justificar seu caráter em um exame crítico de todas as abordagens alternativas. Mas, enquanto a consciência dessa nova visão se espalha, serão muito necessárias exposições breves e simples de suas essências. O professor Rothbard mostra grande habilidade em expô-las de forma concisa e em uma linguagem mais familiar para a presente geração.

Portanto, parece que ele concordava com a praxiologia, apesar dos desacordos com Mises sobre o status da lógica da ação, que ele acreditava ser analítica e não sintética. Hayek acreditava, tal como Menger, que a utilidade marginal é derivada a priori, a partir das próprias noções de ação e intencionalidade. Em vários artigos essenciais, desenvolveu um método de análise das ciências sociais com base na intencionalidade da ação e no subjetivismo.

Mas isso permite afirmar que Hayek era um praxiologista? A resposta depende de como se define praxiologia: se for como um método das ciências sociais que se baseia na análise das ações sob a ótica da intencionalidade e que se funda no individualismo metodológico, podemos dizer que Hayek era, sim, um praxiologista.

Qual era, então, o desacordo de Hayek quanto ao apriorismo do Mises? Basicamente, Hayek parte da constatação de que a “lógica pura da escolha” diz respeito apenas à forma da ação do indivíduo e não ao conhecimento individual que gera a ação, de modo que os fenômenos sociais são dinâmicos, desenvolvendo-se no decorrer do tempo real.

Com o tempo, as pessoas aprendem com outras pessoas, as quais, por sua vez, aprendem por meio de objetos externos e transmitem esse conhecimento para outras pessoas, e assim sucessivamente. Em consequência, o “conteúdo” da ação — o conhecimento — muda constantemente e isso se refletirá na própria ação dos indivíduos. Entretanto, a mudança do conteúdo da ação não pode ser determinada a priori, pois não sabemos o conhecimento que alguém terá no futuro, nem se ou de que forma aprenderá com os próprios erros.

Assim sendo, quando desenvolvemos uma teoria de processos sociais, devemos fazer hipóteses sobre como a mudança do conhecimento se dará. Mas isso depende apenas de evidências empíricas, ou seja, que podem ser provadas como verdadeiras ou falsas no futuro, e não se derivam diretamente da lógica da escolha ou praxiologia. Por isso, a teoria econômica não é inteiramente a priori em Hayek.

Ele também explica isso em seu artigo The Meaning of Competition:

Quando lidamos, no entanto, com uma situação em que várias pessoas estão tentando executar os seus planos separados, não podemos mais assumir que os dados são os mesmos para todas as mentes planejadoras.

Em suma, Hayek reafirmou o básico: o contexto é importante.

Se imaginarmos as explicações econômicas como uma tesoura, Hayek afirmou que uma lâmina era a pura lógica da escolha e a outra, as circunstâncias dessa escolha. A explicação constitui a lógica da análise situacional. Como Hayek não relaxou o pressuposto do interesse público, sua análise teve que se concentrar na aprendizagem.

3. A inviabilidade do socialismo

Para lidar com o debate sobre a inviabilidade econômica do socialismo em língua inglesa na década de 1930, Hayek usou argumentos diferentes dos que Mises usou nos debates em língua alemã, na década de 1920. 

Em termos gerais, Mises e Hayek argumentaram que, na ausência de mercados livres e propriedade privada, a autoridade central de planejamento não é capaz de tomar decisões eficientes de alocação de recursos. Contudo, as explicações eram diferentes.

Mises apresentou dois grandes argumentos para afirmar que uma autoridade central de planejamento não pode tomar decisões eficientes de alocação de recursos:

1) a falta de incentivos proporcionados em uma sociedade socialista para que as pessoas atuem economicamente: a falta de propriedade privada de capital e terra no socialismo não proporciona às pessoas motivos para agirem de forma responsável e assumirem iniciativas;

2) dificuldades de determinar valores monetários dos bens de produção no socialismo, pela ausência de propriedade privada.

Hayek também expôs dois argumentos contra o socialismo, menos claros, pois surgiram como uma extensão dos argumentos de Mises e depois foram desenvolvidos ao longo de muitos anos: primeiro, em resposta direta aos argumentos de economistas mainstream deque os preços não precisam ser os fornecidos pelo mercado, mas também podem ser preços anunciados pelas autoridades centrais (non market prices), ele demonstrou que, mesmo se fosse possível coletar todos os dados relevantes, o problema do socialismo ainda não seria resolvido, devido à “natureza e quantidade de informações concretas necessárias para tentar uma solução numérica e a magnitude da tarefa que esta solução numérica deve envolver em qualquer comunidade moderna”.

A quantidade de informação necessária para tornar o resultado pelo menos comparável com o que o sistema competitivo fornece excederá o poder da análise algébrica.

O segundo argumento é que o conhecimento fornece os dados a partir dos quais o cálculo econômico começa, mas esses dados não podem ser capturados por uma autoridade central de planejamento porque não estão prontamente disponíveis e estão dispersos ao longo do tempo e de lugar; trata-se de conhecimento privado e que depende de contextos particulares.

Hayek escreve:

O conhecimento das circunstâncias de que devemos fazer uso [para calcular] nunca existe de forma concentrada ou integrada, mas apenas como fragmentos dispersos de conhecimento incompleto e freqüentemente contraditório que todos os indivíduos separados possuem.

Para Hayek, então, o problema do socialismo está principalmente enraizado na ignorância ou falta de conhecimento da autoridade central de planejamento.

Ou seja, o argumento original de Mises é o de que a ausência de propriedade privada sobre os meios de produção impossibilita a existência de trocas de mercado.  Sem as trocas de mercado, não há formação de preços.  E sem preços, é impossível haver qualquer cálculo econômico racional.

Já Hayek se concentrou no argumento da dispersão de informação. Segundo ele, é impossível um comitê central apreender e utilizar corretamente toda a informação que está dispersa pela economia. Consequentemente, é impossível esse comitê central gerenciar a economia e fazê-la produzir de forma otimizada. Hans-Hermann Hoppe criticou abertamente essa lógica hayekiana. 

Com base nesses argumentos, vários austríacos fazem uma distinção entre Hayek e Mises. Nunca foram claros, mas parece que são escorados em duas proposições fundamentais: (1ª) o argumento da impossibilidade do cálculo econômico sob o socialismo, de Mises, diagnosticou suficientemente o problema do socialismo, antes da entrada de Hayek no debate e (2ª) a ênfase de Hayek na falta de conhecimento das autoridades de planejamento central não se constituiria necessariamente em obstáculo para o funcionamento do estado socialista.

Quanto a isso, limito-me apenas a repetir as palavras do grande Jesús Huerta de Soto, não só um dos maiores especialista em Hayek, como também o principal estudioso da economia socialista. Disse ele:

O ponto de vista de Mises (e de Rothbard e Hoppe) e o de Hayek são complementares. 

Mises entendeu perfeitamente bem que, se não houver propriedade privada sobre os fatores de produção e um livre mercado no qual eles possam ser comercializados, será impossível determinar preços de mercado para esses fatores. Consequentemente, o cálculo econômico, que é o que possibilita a produção e toda a racionalidade da economia, deixa de existir.

Porém, o próprio Mises também deixou claro que essa ausência de preços impossibilitaria aquilo que ele chamou de “divisão intelectual do trabalho”. Os preços estabelecidos pelo mercado permitem que os empreendedores descubram novas informações sobre o atual estado do mercado e utilizem esses conhecimentos recém-adquiridos para aproveitar novas oportunidades de lucro. É essa busca pelo lucro que os leva a atuar de forma empreendedora, comprando fatores de produção a preços baixos, utilizando-os para transformar matéria-prima em bens de consumo, e vendendo o produto final a preços mais altos. Como o próprio Mises disse:

O que possibilita o surgimento do lucro é a ação empreendedorial em um ambiente de incerteza.  Um empreendedor, por natureza, tem de estar sempre estimando quais serão os preços futuros dos bens e serviços por ele produzidos. Ao estimar os preços futuros, ele irá analisar os preços atuais dos fatores de produção necessários para produzir estes bens e serviços futuros. Caso ele avalie que os preços dos fatores de produção estão baixos em relação aos possíveis preços futuros de seus bens e serviços produzidos, ele irá adquirir estes fatores de produção. Caso sua estimação se revele correta, ele auferirá lucros.

Portanto, o que permite o surgimento do lucro é o fato de que aquele empreendedor que estima quais serão os preços futuros de alguns bens e serviços de maneira mais acurada que seus concorrentes irá comprar fatores de produção a preços que, do ponto de vista do estado futuro do mercado, estão hoje muito baixos. Consequentemente, os custos totais de produção — incluindo os juros pagos sobre o capital investido — serão menores que a receita total que o empreendedor irá receber pelo seu produto final. Esta diferença é o lucro empreendedorial.

Portanto, segundo Mises, é a existência de preços de mercado o que permite a divisão intelectual do trabalho, a apreensão de informações e todo o subsequente processo racional de produção. Sem preços de mercado não há cálculo econômico porque a criação e a transmissão de conhecimento empreendedorial necessário para coordenar a sociedade ficam bloqueadas. 

Esse argumento de Mises complementa o de Hayek.

Hayek se concentrou no segundo argumento, o da dispersão de informação, muito provavelmente porque queria se defender dos ataques de Oskar Lange e dos neoclássicos, que diziam que, se o cálculo econômico era impossível em termos estritamente computacionais por causa da ausência de preços, então bastava que os planejadores centrais criassem equações matemáticas que simulassem corretamente as condições vigentes de mercado, o que possibilitaria determinar oferta, demanda e preços, fazendo com que todo o processo produtivo magicamente se tornasse racional.

Portanto, a posição de Mises e a de Hayek são complementares.  Mises, ao se concentrar na inexistência de preços de mercado, deixou claro que a consequência do socialismo é o bloqueio da divisão intelectual do trabalho, que é justamente o argumento de Hayek.

4. Filosofia política: “Social-democrata”? Faça-me o favor…

Nas décadas seguintes às suas disputas com Keynes e os socialistas de mercado, Hayek aprofundou-se nas condições institucionais que permitiriam o tipo de aprendizagem mútua necessária para a cooperação social sob a divisão do trabalho e a complexa coordenação que constitui uma economia moderna (veja aqui a mais perfeita exposição deste pensamento).

Hayek sustentou que os mecanismos de aprendizagem da política e da economia são totalmente diferentes e que, para estudar a política a partir da perspectiva do problema do conhecimento, é necessário que o teórico examine, em contextos diferentes de propriedade, não os preços, lucros e prejuízos, mas, em vez disso, problemas como votação, campanhas, burocracia, orçamentos etc.

O aprendizado sem dúvida ocorre, mas o que é aprendido, como é aprendido e quem está aprendendo é significativamente diferente na política e no mercado.

Para que a intervenção política seja “racional”, ela deveria alcançar o que o mercado alcançaria se operasse de forma ideal.

Sendo assim, será que deveríamos ver algum tipo de processo de “mão invisível” na política, que transforma as preferências dos eleitores em resultados políticos que atendam ao melhor interesse da sociedade como um todo? Em resposta, Hayek lista uma história trágica de fracassos de governos e de consequências indesejáveis na política pública.  

Hayek procurou, também, demonstrar que o interesse público é algo que não pode ser realizado, pois os atores econômicos não possuem o conhecimento necessário para persegui-lo, mesmo que queiram fazê-lo. Sendo assim, o liberalismo fornece um ambiente institucional que desencadeia os poderes criativos dos indivíduos e seu desafio foi demonstrar que uma ordem liberal fornece um quadro estável e previsível para a atividade econômica e permite adaptações e ajustes em circunstâncias sob mudanças permanentes, sendo este ambiente de aprendizagem a fonte das melhorias.

Ao passo que Adam Smith argumentou que os maiores avanços na capacidade produtiva da humanidade são devidos à expansão e aprimoramento cada vez maiores na divisão do trabalho, Hayek simplesmente apontou cirurgicamente que a divisão do trabalho implica também uma divisão do conhecimento.

Contrariamente ao que se costuma afirmar, Hayek nunca abandonou a economia, mas simplesmente retornou às suas raízes: a Faculdade de Direito da Universidade de Viena, um dos principais centros de teoria econômica de seu tempo — em que a teoria econômica se preocupava com o quadro institucional — e começou sua carreira trabalhando em problemas econômicos técnicos.

Infelizmente, à medida que as teorias dos economistas evoluíram na primeira metade do século XX, o cenário institucional foi sendo esquecido e eles caíram em um mundo teórico, que ignorava o contexto institucional do comportamento econômico e a administração dos assuntos econômicos no setor público.

O institucionalismo epistemológico de Hayek, como articulado nas décadas de 1930 e 1940, proporcionou as bases para sua própria reconstrução e reafirmação da economia política liberal, como evidenciou em A Constituição da Liberdade e em Direito, Legislação e Liberdade. Saber desse aspecto no pensamento de Hayek é um primeiro passo para reconhecer suas contribuições mais amplas para a ciência econômica e para a arte da economia política.

Com as limitações da razão humana, precisamos de regras espontâneas, gerais e abstratas, resultado da ação humana não propositada, para atingir uma ordem social, mas que não ignorem a razão (Racionalismo Crítico ou Evolucionista). Ele critica a fé cega na razão, pois esta é um aparelho de crítica mais do que de construção, mas reconhece que tem um papel importante em alguns casos: por vezes, a razão, por meio da legislação, é a única forma de corrigir um caminho errado que a lei possa estar tomando. Opõe-se, portanto, aos anarquistas modernos quando afirma que a lei não pode ser deixada totalmente ao sabor da evolução natural: as regras de organização (legislação) devem estar sujeitas ao controle de normas de justa conduta (lei) e o governo deve ser limitado e estar subordinado à lei, com a tarefa de proteger a ordem espontânea através do seu monopólio da força.

Ora, aceitar a ignorância humana e as ordens espontâneas implica, por definição, defender o livre mercado — livre concorrência baseada no sistema de preços livremente estabelecidos — como a melhor e mais eficaz forma interpessoal de comunicação, a qual ocorre por meio da cooperação, imitação e competição entre agentes da sociedade. O fato de o mercado fazer com que pessoas que não se conhecem e com interesses diferentes tenham ações coordenadas — isto é, ao buscar seus objetivos contribuem para que os outros também consigam atingir os seus — revela que a ordem espontânea é melhor do que a ordem organizada.

Por isto mesmo, Hayek defende também uma descentralização do poder político: unidades de governo locais, subordinadas a uma lei geral e igual para todos.

Ele sustentava que o estado deve ser pequeno, limitado a campos que acreditava justificáveis (renda mínima, ruas, estradas, parques, monumentos, instituições públicas como centros de pesquisa, teatros e centros desportivos, certificados de qualidade e restrições na venda de produtos perigosos, regulamentações na construção civil, alimentação e saúde etc). Porém, estava plenamente ciente de que, quando a intervenção estatal começa, é muito difícil contê-la e aí se inicia o Caminho da Servidão, e por isso tentou arranjar mecanismos para limitar o estado e sonhava com estados menores e em competição.

Essa aparente Caixa de Pandora — as exceções listadas — e o fato de ser difícil limitar o estado são as principais críticas feitas a Hayek pelo ramo da Escola Austríaca que segue os ensinamentos de Rothbard, também um ex-aluno de Mises (e ideologicamente um meio termo entre ambos, a meu ver). 

Hayek via o socialismo e a social-democracia, como demonstrou em The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, como um erro intelectual, pois é impossível uma entidade central organizar eficazmente a sociedade, dado que não consegue utilizar o conhecimento, sempre disperso, para “melhorar” a vida social (os socialistas acreditam que há sempre quem “sabe” o que é melhor para nós e se não concordarmos com a sua visão é porque ainda não percebemos que o que eles acham que é o melhor para nós é mesmo o melhor para nós e, por isso, que ainda estaríamos na ignorância).

Ele criticava os socialistas porque estes pensavam que a sociedade — uma ordem extensiva de cooperação entre indivíduos e organizações — funciona da mesma forma que os pequenos grupos primários. Mas a sociedade não funciona como uma grande família e não tem as características dos grupos primários, como solidariedade e lealdade. O vendedor de sorvetes que dá um sorvete ao filho de graça não pode fazer o mesmo para todas as crianças que vão à sua loja. Dizendo de outra maneira, homens são homens e não formigas, abelhas ou cupins.

Foi criticado porque, apesar da sua defesa da liberdade negativa (ausência de coerção) e dos direitos negativos, aceitava um mínimo de coerção como sendo necessário para proteger a liberdade individual, garantir a manutenção das normas espontâneas, assegurar o quadro jurídico do livre mercado, garantir que contratos voluntários sejam respeitados, a defesa do país contra inimigos e um mínimo de segurança social (uma safety net). E também por sustentar que a liberdade para todos e sem limites levaria ao fim da própria liberdade e, portanto, que cabe ao estado garantir o respeito pela liberdade individual, de modo a que se consiga maximizar a liberdade possível.

Por isso, ele estabelece que a democracia (a regra da maioria) inspirada no liberalismo (na limitação de poderes) deve ser subordinada a mecanismos, como uma Constituição (ou vários textos, como no Reino Unido) e a plena separação de poderes. Assim, a democracia seria um meio, e não um fim, para se aplicar a lei — normas gerais e abstratas que exprimem valores. Esta defesa do primado da lei implica um governo de leis e não de homens (common law).

Assim como Milton Friedman, Hayek via o estado como árbitro do jogo (ou jardineiro), mas defende que essa autoridade deve também estar sujeita a regras abstratas e ao controle de outros mecanismos independentes — para não cairmos no intervencionismo estatal construtivista que, depois de começar, sempre em nome da “justiça social”, é muito difícil de ser contido.

É muito importante salientar que Hayek percebeu claramente que as ordens espontâneas podem assumir várias formas e, portanto, podem ter valores liberais ou não. O fato de uma ordem ser espontânea não significa que não possa ser criticada e que algum construtivismo não possa ser necessário (como a proibição da segregação racial, por exemplo).

Porém, uma crítica importante a Hayek é que o primado da lei (Rule of Law) é imposto por pessoas e ele pretendia que fôssemos governados pela lei e não por decisões arbitrárias de políticos (legislação), que têm interesses próprios. Sendo assim, quem imporia essa lei? Uma aparente solução seria a criação de várias assembleias para que umas limitem as outras. No entanto, ainda assim, no final, a lei será imposta sempre por pessoas, indivíduos.

Outra objeção comum é ao conceito confuso de coerção de Hayek, que chega a se revelar por vezes contraditório, como escrito por Rothbard.

E, por fim, alguns anarcocapitalistas sustentam que Hayek é incoerente, quando aceita algumas áreas em que o governo deve intervir, depois de dizer que nenhuma entidade central pode planejar uma sociedade, visto que o conhecimento está disperso.

O ponto é que, mesmo sujeito a algumas ou a todas essas críticas, não é definitivamente apropriado taxar Hayek de “social-democrata”, pois ele sempre foi um liberal, talvez com o “defeito”, segundo a concepção de algumas seitas, de ser realista e prático em termos de Filosofia Política.

Conclusão: reciprocamente excludentes ou complementares? Uma agenda positiva

É importante que os economistas da Escola Austríaca busquem se concentrar em esforços positivos, em vez se dispersarem em heurísticas negativas.

Meu conselho aos meus alunos é que devemos tirar o máximo proveito dos muitos e excelentes escritos de ambos, Mises e Hayek, bem como de outros autores e ter sempre em mente um programa de pesquisas progressivo e positivo. Acredito que seja esse é o grande desafio para a Escola Austríaca neste século XXI. O foco em aspectos estreitos resulta em divergências e briguinhas desnecessárias, dispersivas e de utilidade, no mínimo, duvidosa.

Abaixo a mitologia da coerência, pois o que realmente importa é que somos todos austríacos

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Por Ubiratan Jorge Iorio

Publicado originalmente em: cutt.ly/0XXEuiL

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