Um meme que circula na internet desde o final da campanha eleitoral é irônico e destinado a quem temia a possibilidade de um governo petista, mas tinha pouco dinheiro: “está preocupado com o comunismo no Brasil, mas tem um Chevette”. Esse chiste passa uma mensagem subliminar segundo a qual todos os pobres devem ser de esquerda.
Em meados dos anos 2000, trabalhei em uma agência de publicidade e entrei em contato com uma pesquisa que procurava destrinchar quem eram os consumidores das classes D e E. Estávamos sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e a chamada nova classe C ainda não tinha surgido. Mas o mercado consumidor de baixa renda era algo que estava sendo explorado pelos gigantes do varejo nacional.
Em linhas gerais, o estudo dividia essa categoria em três grupos. Um era de pessoas ligadas a movimentos sindicais ou comunitários – gente mais ligada a organizações sociais que não ligavam exatamente para o fato de terem ou não dinheiro. A coisa mais importante de suas vidas era a política partidária, sindical ou da comunidade. Em seguida, havia outro grupo – o das pessoas que se identificavam com a frase: “eu sou pobre”. Por fim, havia mais uma subdivisão, a dos que se identificavam com a frase “eu estou pobre”.
Segundo os especialistas que leram a pesquisa, aqueles que diziam ser pobres achavam que iriam continuar assim pelo resto de suas vidas. Já quem afirmava estar na pobreza acreditava viver em uma fase passageira em sua vida – e tinha fé em uma mudança em sua condição social.
O empreendedorismo, nessa faixa socioeconômica, é visto por muitos como uma ferramenta de ascensão social. Esses indivíduos com DNA empreendedor, assim, podem ser classificados como pessoas que se identificam mais com a direita do que com a esquerda. Isso não os torna, evidentemente, extremistas. Mas é gente que aposta no capitalismo e quer acumular patrimônio – nem que seja um Chevette antigo.
Ainda nesse grupo há quem não queira viver de benefícios sociais e deseja retomar ao mercado de trabalho por conta própria. Ou aqueles que não acreditam que o Estado deva interferir na economia ou na sociedade. Essas pessoas têm uma ideologia mais alinhada com a direita, mesmo que não tenham posses ou um saldo bancário expressivo.
Sempre se acreditou no Brasil que a esquerda seria a única corrente ideológica que injetaria investimentos sociais para beneficiar as camadas menos favorecidas da nação. Os últimos anos, porém, nos mostraram um governo de direita que assimilou essa bandeira. Foi com interesse eleitoral? Sem dúvida.
Mas a busca do governo de Jair Bolsonaro em vencer as eleições através de programas sociais fez com que os eleitores de direita abraçassem essa causa e até a defendessem em público. Tanto é que uma das razões para que se aprove a PEC da Transição, que fura o teto de gastos públicos, é que a bolsa de R$ 600 mensais também era defendida pelo candidato à reeleição.
Essa mistura ideológica deve provocar mudanças profundas no cenário político brasileiro. Especialmente se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva conseguir reduzir a rejeição provocada pelas acusações levantadas pela Operação Lava-Jato. Mas, se ao contrário, a gestão de Lula for um fracasso, teremos um acirramento da polarização partidária vista ao longo dos últimos tempos. Com o populismo de direita brandindo armas semelhantes às da esquerda.
Será que aguentamos muito tempo neste clima beligerante com características ideológicas aparentemente contraditórias? Não é possível responder essa questão de imediato. Mas uma coisa é certa (citando outro meme famoso na rede): os cientistas da NASA precisam visitar logo o Brasil e tentar decifrar nossas características únicas.