Diretores reduziram participação na empresa em 40% após agosto, quando Rial foi anunciado, e terão de se explicar
“No Brasil, até o passado é incerto.” A frase do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan já virou ‘meme’ sobre o fato relevante divulgado pela Americanas (AMER3) no início da noite de ontem, dia 11. É o eterno hábito do brasileiro de fazer piada com tudo, inclusive com coisas sérias, sérissimas.
Sérgio Rial, ex-presidente do Santander Brasil, assumiu como presidente de uma das mais antigas redes de varejo, com quase 100 anos, no dia 2 de janeiro. Passados nove dias, a companhia anunciou que foram encontradas inconsistências contábeis estimadas em R$ 20 bilhões, na conta de fornecedores. Ou seja, foram subregistrados esses cifrões nos balanços dos últimos anos, inclusive em 2022.
Rial renunciou à posição imediatamente. André Covre, que assumiu como CFO, também. O número, para se ter ideia da gravidade, é maior que o patrimônio líquido da companhia registrado ao fim de setembro, pouco abaixo de R$ 15 bilhões. É como dizer que caiu uma bomba no mercado brasileiro e também na história dos empreendedores.
Se confirmado, o escândalo poderá ser o maior de uma companhia privada brasileira. Sim, é desse tamanho. E numa empresa fundada em 1.929. Quem já viveu ou acompanhou algo desse tipo não acredita que a descoberta ocorreu nesses nove dias. A aposta é que Rial, ao aceitar a proposta de Beto Sicupira, Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann, para comandar a Americanas, pediu uma auditoria externa, cujo trabalho teria ficado pronto agora, no começo de 2023.
A auditoria independente da própria companhia, a PwC, não havia apontado nenhum problema nos balanços, cuja análise não continha nem ressalva, nem ênfase, conforme a EXAME apontou ainda ontem. Quem conhece Rial sabe de seus cuidados e de sua percepção de que todos aqueles que são pagos pela empresa e que se reportam ao CEO ‘filtram’ as informações. “Todo mundo quer ver CEO feliz”, costuma dizer ele, daquele jeito de quem fala a verdade com irreverência. Seja como for, ele gosta de garantir seus caminhos para concluir tudo por si próprio.
O que o EXAME IN apurou é que decisão da saída imediata de Rial e Covre foi tomada de comum acordo com os acionistas de referência. O que se confirma com o fato de que Rial atuará como assessor dos acionistas para essa situação.
Há grande expectativa sobre a abertura do pregão de amanhã e sobre como serão os próximos dias. É esperado um ataque especulativo relevante contra o negócio. O que isso significa? Que fornecedores só quererão vender à vista. Que bancos vão executar o que houver a ser executado — ou, ao menos, ameaçar. Que funcionários pedirão demissão de forma antecipada, para não cair no risco de virarem credores no futuro.
O trio controlador não é majoritário. Juntos, eles possuem pouco mais de 31% do capital total. Outros investidores relevantes, de mercado, são estrangeiros: o Capital Group, com quase 10%; o TIAA, que é o Teachers Insurance and Annuity Association of America-College Retirement Equities Fund, com 6%; e a BlackRock, a maior gestora de recursos independente do mundo, com 5%.
Os controladores minoritários, os fundadores da 3G Capital, são acionistas há cerca de 40 anos. A Americanas é símbolo de um dos primeiros investimentos do que era o extinto Garantia. A empresa ganhou rios de dinheiro no passado, espremendo fornecedor e operando inflação.
Mas, a Americanas de hoje, que movimenta entre R$ 55 bilhões e R$ 60 bilhões em vendas ao ano, terminou setembro com R$ 19,3 bilhões em dívidas financeiras, entre empréstimos, financiamentos e debêntures, para R$ 8,8 bilhões em caixa e mais R$ 5 bilhões em contas a receber.
Rial e Covre enfrentaram uma difícil decisão nos últimos dias. Eles não poderiam não informar o mercado sobre o que encontraram. Do contrário, se tornariam cúmplices — inclusive do ponto de vista legal. Tampouco poderiam permanecer em seus cargos, mesmo não sendo os responsáveis pelos problemas, uma vez que a realidade encontrada é muito diferente do que o esperado quando negociaram tomar as rédeas da empresa.
A Americanas era, até essa descoberta, um ativo que necessitava uma grande reestruturação operacional e financeira. Uma tarefa que, quem estava de fora, sabia ser muito árdua. Mas supor um problema dessa magnitude era ‘impensável’.
Com a saída de ambos, a liderança da companhia ficou nas mãos de um executivo com aproximadamente 30 anos de casa: João Guerra. Ele chegou no negócio quando tinha 70 lojas — hoje, são mais de 3.000 pontos. Guerra já passou por todas as frentes, em sua longa trajetória — controladoria, tecnologia, recursos humanos. Agora, ele que parecia muito animado com a expectativa da liderança de Rial, vai sentar na cadeira de CEO em um incômodo período.
Daqui para frente, os executivos enfrentarão tempos difíceis. Serão investigados e revirados do avesso. Será necessário entender como isso ocorreu e quem foram os responsáveis. Em cenários desse tipo, a companhia tem a prerrogativa, a depender do resultado da investigação, claro, de iniciar uma ação de responsabilidade civil contra os administradores, com a finalidade de buscar as perdas enfrentadas.
Esse tipo de ação judicial precisa ser aprovada em assembleia. Mas, também pode ser conduzida, em nome da Americanas, por um acionista ou grupo com 5% do capital. Se esse grupo comprovar problemas e má fé e sair vitorioso, a empresa é quem arca com as despesas do processo. Mas, se perder, tem de pagar o custo de tudo e todos. Na Internet, já circulam questionamentos sobre como e quando essas iniciativas serão tomadas.
Nesse caminho, acionistas minoritários importantes já estão fazendo balburdia no mercado apontando as vendas de ações feitas por executivos da Americanas em 2022, especialmente após o anúncio de que Rial assumiria como CEO. Duas versões se contradizem sobre os relatórios de movimentação apresentados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mensalmente.
De um lado, há quem diga que foram diretores executados por bancos, nos quais tomaram crédito e deram os papéis em garantia. A queda do valor das ações, que foi acentuada desde a combinação entre Lojas Americanas e B2W em dezembro de 2021, teria levado a uma chamada de margem. Como o depósito de recursos não ocorreu, o banco teria ‘vendido’ os papéis automaticamente.
A outra versão é muito mais complexa. E apenas uma investigação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) poderá sanar. Há quem diga que as vendas foram, majoritariamente, feitas por Miguel Gutierrez, que ocupava o posto de CEO até a chegada de Rial. Após a união entre Lojas Americanas e B2W, os diretores ficaram com 31,1 milhões de ações da companhia resultante — meio de janeiro de 2022. Ao fim de julho, esse total estava em 29,6 milhões. Mas, ao fim de setembro, essa soma havia caído substancialmente para 20,1 milhões, e, em dezembro, para 18,6 milhões.
Ou seja, as vendas no ano — absolutamente concentradas após agosto — somaram 12,5 milhões de ações, ou 40% da posição da diretoria da companhia. De fato, um percentual difícil de ser alcançado sem a participação do CEO, que normalmente, tem uma remuneração, inclusive em opções de ações, em volume maior que os demais diretores. A preços de hoje, as vendas somariam R$ 150 milhões.
Esse valor equivale a 1,5% do valor de mercado atual. Mas, considerando o valor de mercado do fim de 2022, equivalia a algo entre 15% e 18%, pelo preço médio do período.
Enfim, a única conclusão possível, nesse momento, é que explicações a serem dadas pela administração da Americanas não faltam. O certo seria que as cobranças começassem pelo trio 3G. Afinal, Gutierrez ficou na posição de CEO por cerca de 20 anos. Rial e Covre apresentam o que viram ao mercado amanhã, a partir das 9 horas.
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Por Graziella Valenti e Guilherme Guilherme
Publicado originalmente em: bit.ly/3X4G4gP
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Comunicado das Americanas