As redes sociais têm várias características. Mas uma delas, talvez uma das minhas favoritas, é desenterrar episódios do passado. Nesta semana, chegou até mim um deles. Trata-se de uma entrevista do ator Tom Cruise para o jornalista Peter Overton, do programa australiano 60 Minutes. Quem viu o programa inteiro percebeu que a tensão tomou conta da conversa quando se falou sobre a religião de Cruise, a Cientologia.
Mas o trecho que viralizou foi o momento em que ele é perguntado se Nicole Kidman, sua ex-mulher, tinha sido o grande amor de sua vida. Na visão do jornalista, a relação de um dos maiores nomes do cinema mundial com uma estrela nascida na Austrália seria assunto de interesse de seu público. Mas o ator de “Missão Impossível” não reagiu bem à pergunta. Seguiu-se, então, um diálogo carregado:
– O que você quer dizer, Peter?
– Vocês foram casados por dez anos…
– Ouça, nós criamos crianças, eu… sabe… quer dizer, como se responde a essa pergunta? (pausa) Ela é alguém que eu… bem, eu tenho planos de me casar de novo.
– Você tem?
– Oh, sim. Absolutamente (em inglês, essa palavra – ao contrário do português do Brasil – é afirmativa).
– E ter filhos?
– Absolutamente (novamente, no sentido afirmativo).
– Mas Nicole foi uma parte importante em sua vida, o amor da sua vida naquele momento.
– Eu amei Nic. Muito. Verdade.
– Você gostaria que Nicole se casasse de novo?
– Sim. Eu quero que Nicole seja feliz. É o que eu quero.
– E você tem um relacionamento no qual vocês conversam sobre a educação dos filhos…
– Veja, aqui está o que eu acho, Peter…Você está prestes a ultrapassar o limite agora. E você sabe disso.
– Eu acho que a pergunta… as pessoas querem saber.
– Peter, Peter… Você quer saber. Tenha responsabilidade por aquilo que você quer saber. Não diga que são outras pessoas. Essa é uma conversa que estou tendo com você.
– Você está…
– Então, estou falando agora. Comporte-se (“Put your manners back”).
– Você acha que eu ultrapassei os limites?
– Sim.
– Então, eu me desculpo sinceramente.
Tom Cruise não é exatamente uma pessoa fácil de se entrevistar. Uma participação sua no programa matutino Today, da TV americana NBC, foi um show de horrores quando o assunto foi depressão pós-parto, com demonstrações explícitas de arrogância em cima do âncora Matt Lauer.
Mas, neste caso, o ator nos dá a oportunidade discutir um ponto importante sobre entrevistas e jornalismo.
Esse ponto é: uma figura pública tem direito a evitar perguntas sobre sua vida pessoal? Claro que tem. O jornalista deve acatar? Muitas vezes, não. E, no mundo das celebridades, é inevitável passear pelo terreno das fofocas ou de temas mais mundanos.
Os limites acabam sendo marcados pelos entrevistados, como Tom Cruise fez com Peter Overton. E essas fronteiras são flexíveis de pessoa para pessoa – ou dependem do contexto que cerca a entrevista. Em momentos diferentes, o mesmo entrevistado pode engolir uma pergunta que pareceria inaceitável no passado.
Outra questão é: até que ponto termina a curiosidade pessoal de um jornalista e começa a do público em geral? A resposta que eu costumo dar a esse tipo de pergunta é a de que tudo passa pelo filtro do entrevistador. Portanto, o interesse é pessoal – e o jornalista assume que sua indiscrição vai bater com a do público.
Muitas vezes, a tarefa do jornalista é ir além da curiosidade pública: é desvendar assuntos que a audiência sequer sabe da existência. Assim, o entrevistador é uma espécie de curador instantâneo de conteúdo; a condução de uma entrevista é como se fosse um jogo de xadrez. Nós, jornalistas, estamos ouvindo uma resposta e já armazenamos pelo menos duas outras questões na cabeça. Mas, dependendo do que ouvimos, podemos refazer o nosso roteiro e explorar novas vertentes durante a conversa.
O ideal é transformar a entrevista em uma conversa, sendo respeitoso e amistoso ao mesmo tempo – mas sem adulação. São poucos os que dominam essa técnica no jornalismo atual. E muitos, por sinal, preferem transformar uma entrevista em duelo. Isso dificilmente dá certo, pois o entrevistado levanta seus escudos e torna a interação truncada.
O entrevero Cruise-Overton, ressuscitado pela internet, é volta e meia analisado como um exemplo clássico de como as celebridades não devem se comportar em público. O assunto foi relembrado em maio do ano passado pela imprensa internacional e, em dezembro, pelo Daily Mail, o segundo maior tabloide de circulação no Reino Unido. E agora está novamente na pauta das redes sociais.
O passado, definitivamente, deixou de ser enterrado desde que a internet foi inventada. Mais um motivo para que todos – não apenas as celebridades – tomem cuidado na hora de dar uma entrevista, especialmente aquelas que são gravadas.