Alguns dias atrás, o Google lançou o Magic Editor, uma ferramenta de edição de imagem que conta com recursos de inteligência artificial. Com esse aplicativo, os portadores de telefone com o sistema Android poderão brincar com suas fotos, tirando pessoas do quadro ou acrescentando elementos que não estavam na figura original.
O ditador Josef Stalin, da antiga União Soviética, ficou conhecido por apagar a figura de antigos colaboradores que caíam em desgraça – em uma época na qual não havia nem fotografia digital. Stalin mandava sua equipe retocar as fotos a mão e ia tirando os desafetos dos registros fotográficos, de forma que o passado, pelo menos em território russo, se tornava imprevisível. Se ele tivesse uma ferramenta como essa à mão, sua obsessão em apagar os inimigos da história ficaria muito mais fácil.
Embora a intenção dos criadores desse aplicativo seja meramente recreativa, trata-se de algo que pode mudar completamente a nossa percepção diante de um material fotográfico. Será possível mexer em imagens reais e torná-las uma peça de ficção. Em um primeiro momento, o resultado poderá parecer tosco (como nas intervenções de Stalin). Mas, como esse recurso conta com o auxílio de inteligência artificial, será aprimorado constantemente até chegar próximo da perfeição.
Quando isso ocorrer (e esse recurso deverá ser amplamente oferecido pelos iPhones em algum momento), não poderemos mais ter certeza nenhuma a respeito da autenticidade das fotografias. Imagine, por exemplo, em um mundo repleto de fake news o que isso pode causar. Políticos ou clérigos poderão ser inseridos em situações embaraçosas com pouquíssimo esforço, entrando inadvertidamente em escândalos de porte.
Isso vai tornar a vida dos checadores de fato muito mais difícil – mas não há nada que possamos fazer para segurar o avanço tecnológico. Já havia recursos semelhantes a esse, só que restritos a um pequeno grupo de pessoas. Ao popularizar a edição radical de fotos, o Google vai tornar a vida dos fotógrafos mais fácil, com a possibilidade de corrigir eventuais erros na chamada pós-produção.
Do ponto de vista jornalístico, porém, entraremos em uma sinuca de bico. Aparentemente, precisaremos utilizar a análise de peritos quando uma foto, digamos, constrangedora chegar às redações. Qualquer edição deixa rastros, mas muitos deles são imperceptíveis ao olho nu. Somente com o auxílio de softwares especializados é que poderemos separar o joio do trigo. Além disso, esse novo recurso nasce como uma desculpa perfeita para aqueles que serão flagrados com a boca na botija: todos os culpados vão dizer que a imagem indiscreta, que os prejudica, foi manipulada artificialmente.
Se os jornalistas passarão por perrengues por conta da nova tecnologia, os usuários vão se esbaldar.
Quem não tem uma foto, por exemplo, que adora – mas que foi estragada pela presença de um ex? Com o novo editor, apagar a presença indesejável da foto será facílimo.
Lembro que minha mãe tinha um método radical para eliminar as pessoas indesejáveis das fotografias (naquela época, todas impressas em papel): ela simplesmente pegava uma tesoura e retirava a presença considerada nefasta imediatamente.
Em um mundo digital, porém, os rastros dessa eliminação sumária serão dificílimos de ser detectados. Dessa forma, poderemos apagar rapidamente e sem esforço determinadas figuras de nossos registros. Isso pode ser bastante confortável. Mas, por enquanto, essas pessoas ainda ficarão gravadas em nossas memórias. Por enquanto — pois será uma questão de tempo até que alguém invente algo que possa retirar recordações inconvenientes de nosso cérebro.
Uma resposta
Inquietante invenção, brilhante reflexão. O fecho mostra, além do jornalista, o escritor.