As palavras “gratidão” e “escravidão” não podem ficar próximas na mesma frase sem uma negação no meio
Em maio de 2012, o então presidente estadunidense Barack Obama cometeu uma vexaminosa gafe. Em discurso em homenagem a um herói da resistência polonesa na Segunda Guerra, citou os “campos poloneses da morte”, ao se referir a abatedouros humanos como Treblinka, Auschwitz e Sobibor, onde nazistas exploraram e massacraram judeus, eslavos, comunistas, ciganos, dissidentes, gays e testemunhas de jeová, incluindo poloneses. Diante da indignação, o primeiro presidente afro-americano teve que lançar um pedido oficial de desculpas, explicando que deveria ter dito algo como “um campo nazista na Polônia ocupada pela Alemanha”. O redator do discurso deve ter perdido o emprego.
Em julho de 2018, o então presidenciável Jair Bolsonaro, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, respondeu sobre cotas raciais: “O português nem pisava na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos”. Ele queria minimizar o papel dos brancos europeus no tráfico negreiro para justificar sua contrariedade à política de cotas raciais. Ofendeu muita gente ao ignorar que os portugueses patrocinaram a captura, subjugação, tortura, exploração, estupro e assassinato de quase 5 milhões de africanos trazidos à força ao Brasil entre os séculos 16 e 19. Um ano depois, essa história começaria a ser esmiuçada ao grande público na terrível série best-sellers “Escravidão”, de Laurentino Gomes.
Obama foi destrambelhado e pediu desculpas, sem apelar para o manjado argumento de que sua afirmação foi tirada no contexto. Bolsonaro manteve o que afirmou, sob a alegação que a política de cotas poderia “dividir o Brasil entre negro e brancos”. Como se já não fosse assim.
E o Lula? Em rápida escala em Cabo Verde, nesta quarta feira (19), no retorno da Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia (UE), na Bélgica, o presidente brasileiro esteve com seu colega cabo-verdiano José Maria Neves. De olho na retomada da diversificação das relações comerciais, Lula quer se aproximar dos países africanos, principalmente os da costa atlântica. Errado não está. Também aproveitou para espetar Bolsonaro: ““Se não tivéssemos tido um governo negacionista, o Brasil poderia ter produzido vacina contra a covid-19 e ajudado o continente africano.”
Daí escorregou feio. Como se fosse um saudoso tataraneto de senhor de engenho da Zona da Mata pernambucana, tascou: “Temos profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão em nosso país”. Ainda que ele defenda as cotas e reparações históricas, as palavras “gratidão” e “escravidão” não podem ficar próximos na mesma frase sem uma negativa no meio. Assim como Obama, Lula escorregou. Assim como Bolsonaro, não se desculpou.