Já faz pouco mais de um ano que o Museu do Ipiranga foi reinaugurado e, de lá para cá, o antigo palácio recebeu cerca de 750.000 visitantes. Para chegar ao edifício neo-renascentista, essa multidão precisa passar pelo Monumento à Independência, que fica às margens plácidas do riacho Ipiranga, que tem 9 quilômetros de seu trajeto canalizado. Poucos desses visitantes sabem, porém, que aquela construção foi alvo de um debate arrastado na cidade de São Paulo e serviu como pano de fundo de uma discussão ancestral – aquela que contrapõe os jovens e os mais velhos.
Em 1919, uma comissão foi criada para julgar um concurso internacional com a missão de escolher o projeto do monumento que celebraria a independência brasileira, prestes a completar cem anos em 1922. Vários artistas se candidataram, mas a decisão final ficou entre poucos projetos – entre eles, os dos italianos Ettore Ximenes e Nicola Rollo. Ximenes, no início do concurso, tinha 64 anos e Rollo apenas 30.
Uma celeuma se instalou pela imprensa, contrapondo dois nomes famosos à época: o engenheiro Francisco Ramos de Azevedo e o escritor Monteiro Lobato. Azevedo votou pela maquete desenvolvida por Ximenes; Lobato defendeu a obra de Rollo. Conforme o encerramento do concurso se aproximava, a temperatura dos debates foi aumentando. No final, Rollo ficou em terceiro lugar, com vitória de Ximenes. Lobato ficou furioso. “Rollo teve a votação unânime da Cidade de São Paulo com exceção apenas de quatro pessoas, que, por coincidência, formavam a comissão julgadora”, vociferou o autor de Reinações de Narizinho.
Um dos defensores de Ettore Ximenes foi o jornalista Nestor Rangel Pestana, que trocou farpas com Monteiro Lobato pelas colunas de jornais. Rangel Pestana considerava o italiano um “bom escultor” e um “bom cozinheiro”.
Não que Monteiro Lobato fosse a encarnação viva do modernismo. Em 1917, por exemplo, havia criticado uma exposição de 53 quadros de Anita Malfatti, pintados durante a estadia da artista nos Estados Unidos. Para ele, a obra de Malfatti parecia com o trabalho artístico feito por pacientes de hospitais psiquiátricos. “A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”, escreveu.
Por conta dessa crítica, muitos escritores, poetas, escultores e pintores prestaram solidariedade a Malfatti. E dessa aproximação se estabeleceu um convívio que pode ter sido uma das sementes para a realização da Semana de Arte Moderna de 1922 no Teatro Municipal.
O comportamento de Monteiro Lobato não foi perdoado por muitos dos integrantes do movimento de 1922. Mas, aos poucos, alguns modernistas, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, acabaram reconhecendo que o criador do Sítio do Picapau Amarelo, em termos estéticos, estava mais próximo deles do que dos classicistas.
O que ocorreu em torno do Monumento à Independência e nos anos que antecederam a Semana de 1922 nos mostra que o Brasil sempre foi do jeito que é: contraditório e surpreendente.
Um exemplo disso é a relação entre Rangel Pestana e Lobato, estremecida ao final dos anos 1910 por conta do projeto do Ipiranga. O que o escritor escreveu depois sobre o jornalista? “Talvez o mais admirável tipo de homem que me foi dado a encontrar na vida… O equilíbrio moral do Nestor! A natural incorruptibilidade do Nestor! O inalterado bom senso do Nestor!”, afirmou em coluna que foi publicada nos jornal carioca A Manhã, alguns anos após a escolha do Monumento à Independência.
Episódios como esses mostram que precisamos escolher muito bem as nossas brigas. Caso contrário, podemos olhar para trás e sentir embaraço ao lembrar de determinadas discussões. Tanto no mundo da política como no das artes plásticas, o inimigo de hoje pode ser o amigo de amanhã.
(Acima, o projeto de Nicola Rollo para o Monumento à Independência. É mais moderno do que o escolhido?)