À medida que o livre comércio foi se difundindo, diminuíram as vantagens de controlar colônias estrangeiras, o que fez o imperialismo retroceder
No dia 11 de novembro, celebramos o Dia do Armistício, que, em 1918, marcou o fim das hostilidades no Frente Ocidental da Grande Guerra. Em tempos em que muitos parecem sedentos por uma Terceira Guerra Mundial, vale celebrar o dia do fim da Primeira Guerra Mundial e refletir sobre o evento que mudou o ocidente para sempre.
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A semana passada marcou o início do 100º aniversário do início da Primeira Guerra Mundial. Aquela guerra, que gerou mais de 37 milhões de cadáveres — e sem considerar as mortes por inanição e epidemias relacionadas que ocorreram como consequência da guerra –, também destruiu os sistemas políticos até então vigentes em vários países, deixando livre o caminho para a implantação do fascismo e do comunismo na Europa.
Nos EUA, e é claro também na Europa, a guerra levou a uma paranóia e a uma repressão política raramente vistas no século anterior. Nos EUA, o governo Wilson e suas medidas contra a liberdade de expressão e de manifestação geraram uma destruição em larga escala das mais básicas liberdades americanas, algo que não havia sido alcançado nem mesmo pelas leis contra estrangeiros e contra críticas ao governo implantadas no século XVIII, durante a quase-guerra naval contra a França.
Especialmente para os americanos, a guerra e os mais de 100.000 americanos mortos lograram apenas uma depressão econômica pós-guerra. Ao passo que alguns europeus podiam ao menos alegar estar lutando contra uma invasão física, os americanos lutaram em troca de nada — exceto para defender alguns regimes autoritários contra ataques de outros regimes autoritários.
A ideia de que a guerra tinha algo a ver com “democracia” era obviamente mentirosa, mesmo à época; e, olhando em retrospecto, a alegação se torna ainda mais ridícula quando se considera a ascensão do totalitarismo na Europa, que foi estimulada pelo Tratado de Versalhes.
Os efeitos fatais da guerra, as medidas de repressão promulgadas por regimes supostamente iluminados, e como a guerra pavimentou o caminho, vinte e cinco anos depois, para sua ainda mais sangrenta segunda parte são questões que já foram cobertas por vários economistas e historiadores. A guerra gerou revoluções no campo ideológico, na administração pública, no governo e no próprio conceito de guerra. Poucas dessas mudanças melhoraram a vida do cidadão comum, e a maioria delas gerou apenas um desapreço pela vida humana e pelas liberdades humanas.
A natureza revolucionária da guerra quase não mais é contestada hoje. No entanto, em vez de nos centrarmos apenas na guerra em si ou em suas consequências, seria proveitoso considerarmos também o que a guerra relegou à lata de lixo da história.
A economia do século burguês
Aquilo que alguns historiadores hoje chamam de “o século da burguesia” se refere ao período de noventa e nove anos entre as guerras napoleônicas e o início da Primeira Guerra Mundial. De 1815 a 1914, não houve nenhuma grande guerra na Europa, e o padrão de vida no continente aumentou em uma intensidade muito além de tudo o que já havia sido testemunhado ao longo da história. A industrialização, a mecanização, e os consequentes aumentos na produtividade da mão-de-obra se difundiram por todo o continente, gerando um enriquecimento até então inédito na história humana.
Em meados do século XIX, o livre comércio já havia se tornado predominante e ocorria em um nível de inédita amplitude, com a mão-de-obra e o capital usufruindo uma nunca antes vivenciada liberdade de movimento através das fronteiras nacionais. Na maior parte da Europa central e ocidental, não era necessário passaporte para cruzar as fronteiras dos países. Com efeito, passaportes e postos policiais nas fronteiras eram coisas associadas a países despóticos e mais atrasados, como a Rússia.
Foi durante este período que o mundo vivenciou o surgimento de escolas de pensamento econômico liberais, com a ascensão dos cobdenistas (seguidores de Richard Cobden — ardoroso defensor do livre comércio — e também conhecidos como os liberais de Manchester) na Grã-Bretanha, os quais, começando com a associação que defendia a abolição de tarifas sobre cereais, lentamente conseguiram dobrar o domínio mercantilista da nobreza latifundiária que se opunha ao livre comércio. A ascensão da classe média, tanto em termos econômicos quanto em termo políticos, foi sustentada por maciços movimentos populares que defendiam a implementação das teses do liberalismo clássico por toda a Europa, movimentos esses que demandavam maiores liberdades econômicas para eles próprios e menos subsídios — financiados por tributos — concedidos às classes dominantes.
À medida que o livre comércio foi se difundindo pelo mundo — e com isso diminuindo as vantagens de se possuir colônias estrangeiras –, o imperialismo também retrocedeu. Um movimento internacional pela paz surgiu, e Cobden, rotulado de “o homem internacional”, era uma de suas celebridades.
Ao mesmo tempo, vários luxos se tornaram acessíveis às classes médias, e isso ocorreu em uma época em que quase todas aquelas coisas que hoje consideramos triviais e rotineiras representavam grandes novidades. Foi durante aquela época que algo semelhante a um “fim de semana” se tornou conhecido. Para a maioria das pessoas, o descanso se limitou apenas ao domingo, mas ainda assim foi a primeira vez na história humana em que os cidadãos comuns já podiam se dar ao luxo não apenas de não trabalhar por algumas horas, como também de gastar algum dinheiro com atividades de lazer, como uma pequena viagem à praia, ou ir às compras, ou praticar esportes, ou ir a um museu, a um teatro, ou a qualquer outro evento cultural.
Essa nova realidade econômica também levou a grandes mudanças nas famílias. Pela primeira vez, um grande número de pais podia bancar uma educação formal para seus filhos, seja por meio de escolas ou por meio de livros e do autodidatismo. Mais lazer e mais renda também significava que os pais podiam dar a seus filhos mais atenção, brincar mais com eles, ler livros conjuntamente e praticar várias outras atividades familiares. Um número cada vez menor de crianças tinha de trabalhar para ajudar a família a manter um nível mínimo de subsistência.
Com a libertação econômica das crianças também vieram melhores condições de vida para as mulheres, que se tornaram mais bem educadas e passaram a ser mais valoradas por suas habilidades em efetuar tarefas complexas, como educar as crianças, manter a higiene da casa (algo bastante trabalhoso em uma cidade do século XIX), comprar alimentos duas vezes por dia (a geladeira ainda estava longe de ser massificada) e muito mais.
Ademais, homens e mulheres finalmente começaram a incorrer na “esquisita” prática de se casarem por motivos de “sentimento e atração física”, uma vez que o casamento por motivos financeiros se tornava cada vez menos uma questão de vida ou morte. Assim como o lazer aos domingos permitia uma maior recreação ao ar livre, o tempo de lazer dentro da família permitia aos adultos mais “recreação privada”, a qual era complementada por ‘manuais de casamento’, sendo os principais encontrados na França, que lembravam aos homens que eles também tinham de satisfazer as necessidades sexuais da mulher.
A ascensão do imperialismo e o caminho para a Primeira Guerra Mundial
Naturalmente, sexo, família e uma tarde na praia passaram a ser vistos por muitos políticos conservadores e por “intelectuais respeitados” como frívolas perdas de tempo. O lazer e o tempo dedicado à família eram vistos como desvios de foco que impediam que mais energia fosse dedicada a objetivos muito mais “honrosos”, como a invenção de uma identidade nacional por meio do poder do estado, da criação de símbolos nacionais, e do estímulo a um orgulho nacional, bem como a prática de aventuras colonizadoras, a construção de impérios além-mar e o domínio da arte da guerra estavam sendo negligenciados.
Otto von Bismarck, um inimigo declarado dos liberais, expressou seu total desdém por esse estilo de vida pró-família quando declarou seu desprezo pelos liberais de Manchester quando disse que “aqueles endinheirados de Manchester” estavam preocupados não com a glória do estado-nação, mas sim em ganhar dinheiro.
Ao final do século XIX, o liberalismo burguês já estava em declínio. Atacado de um lado pelos marxistas e demais socialistas, e de outro por conservadores, nacionalistas e imperialistas, as grandes potências da Europa mergulharam novamente no mercantilismo, no nacionalismo e no imperialismo. A Partilha da África foi uma atitude ilustrativa desse novo imperialismo, uma vez que as grandes potências europeias se tornaram ainda mais agressivas em sua busca por novas colônias. Enquanto isso, os britânicos recrudesceram seu controle sobre a Índia ao mesmo tempo em que inventavam os campos de concentração com o intuito de esfaimar os bôeres e deixá-los submissos.
Ao final do século XIX, Bismarck já estava totalmente dedicado a inventar e implantar o estado assistencialista e em fazer com que a Alemanha se tornasse um estado-nação unificado. Na virada do século, um dos poucos liberais remanescentes, Vilfredo Pareto, da Itália, declarou que o socialismo havia finalmente triunfado na Europa.
Na década anterior à Primeira Guerra Mundial, toda a geração de liberais europeus, dentre eles Gustav de Molinari, Cobden, John Bright, Herbert Spencer, Eugen Richter e outros, já estava morta ou quase morta. Havia apenas alguns poucos jovens liberais acadêmicos aptos a substituí-los.
Ao mesmo tempo, barreiras comerciais voltavam a ser erigidas por toda a Europa à medida que as grandes potências se voltavam ao imperialismo econômico caracterizado pelo mercantilismo, pelas tarifas de importação, pelo controle de fronteiras, por regulamentações e pelo militarismo.
Conclusão
A Europa durante o século burguês certamente não era nenhuma utopia. As novas cidades eram repletas de doenças, poluição e criminalidade. As ciências médicas ainda não haviam alcançado os feitos do século XX e, obviamente, os padrões de vida eram baixos se comparados aos de hoje. No entanto, mesmo se considerarmos estes problemas — os quais, aliás, ainda assolam várias sociedades mais atrasadas ao redor do mundo –, os enormes ganhos obtidos pelos cidadãos comuns, graças à industrialização e à ascensão do livre comércio, foram ainda mais difundidos pela ascensão do liberalismo clássico, o qual ativamente procurou evitar a guerra, a repressão política, e o intervencionismo econômico, pois não os via como sendo a maneira correta de se alcançar uma sociedade mais próspera.
Com efeito, o historiador Daniel Yergin se refere a esse período como a época da “primeira era da globalização”, e observou que “a economia mundial vivenciou uma era de paz e prosperidade que, após a carnificina da Primeira Guerra Mundial, passaria a ser lembrada como a era de ouro”.
O liberalismo já estava em profundo declínio em 1914, mas a Primeira Guerra Mundial talvez tenha representado o último prego no caixão. Após a guerra, veio a depressão econômica na Europa, a qual foi seguida por hiperinflação em vários países, instabilidade política, declínio no padrão de vida e, finalmente, fascismo, comunismo e guerra.
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Por Ryan McMaken
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/lKM69