Experiências em situações de conflito trazem cenários interessantes com os quais podemos aprender
No livro Princípios de Economia Política, de 1871, Carl Menger descreve como várias mercadorias (ou bens) competem entre si para (por vezes) emergirem como meios de troca. Os “indivíduos economizadores”, como Menger os chamou, numa economia de troca podem aceitar bens não para seu próprio consumo (valor de uso direto), mas em vez disso para trocá-los por outros bens (valor de uso indireto). Os bens com pontuações mais elevadas em propriedades monetárias (durabilidade, divisibilidade, escassez, portabilidade, fungibilidade etc.) são considerados mais “vendáveis” e, consequentemente, têm maior probabilidade de alcançar a aceitação comum (status monetário). Assim, Menger referiu-se ao dinheiro como “a mais vendável de todas as mercadorias”.
Em “A Organização Econômica de um Campo de Prisioneiros de Guerra”, o autor R.A. Radford descreve em detalhes fascinantes a economia de um campo de prisioneiros de guerra controlado pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, mantendo prisioneiros aliados de vários países, culturas e origens étnicas. Radford foi um soldado do Exército Britânico capturado, cujo obituário documenta a sua progressão na carreira: obteve um diploma de Economia em Cambridge após a guerra e trabalhou para o FMI logo após. Para os jovens economistas interessados em assuntos monetários, o artigo de Radford é uma leitura obrigatória, pois descreve um cenário da vida real que se assemelha à interpretação mengeriana do dinheiro, que emerge espontaneamente numa economia de escambo. No caso de Radford, esta economia de troca ocorria dentro dos limites de um campo de prisioneiros de guerra.
O artigo de Radford descreve a economia do campo como “um comércio dinâmico de todas as mercadorias”, com preços geralmente denominados em cigarros e (por vezes) em pacotes de alimentos da Cruz Vermelha. De acordo com Radford, os cigarros “passaram do status de mercadoria normal para o de moeda”. Os cigarros enrolados industrialmente eram mais “vendáveis” (em termos mengerianos), pois eram mais homogêneos do que os enrolados à mão. Cada vez que novos carregamentos de cigarros ou pacotes de alimentos chegavam ao campo, os preços dessas mercadorias disparavam, como seria de esperar.
Na minha perspectiva, o relato de Radford sobre a economia dos campos de prisioneiros de guerra faz lembrar mais um acordo econômico em que participei quando era mais jovem.
A economia do treinamento militar
Há muitos anos, servi na Força Aérea dos Estados Unidos. Durante o Treinamento Militar Básico, encontrei e confesso que participei de uma espécie de economia “às sombras”. No quartel, máquinas de venda automática totalmente abastecidas com todo tipo de junk food (comidas industrializadas de baixo valor nutricional) eram proibidas para os recrutas (como eram chamados os novatos). O único propósito real dessas máquinas de venda automática, ao que parecia, era lembrar aos recrutas fora de forma o que eles não poderiam ter. No entanto, por alguma razão, os próprios recrutas eram rotineiramente escalados para vigiar as máquinas de venda automática de lanches rápidos, as quais, curiosamente, não dispunham de câmeras para “vigiar os vigias”. Como era de se esperar destes jovens adultos, aqueles na função de guardas inseriam moedas nas máquinas quando ninguém estava olhando e usavam dos lanches ilegalmente obtidos para barganhar favores de outros recrutas. Assim, por exemplo, uma barra de Snickers poderia ser usada para pagar outro recruta para engraxar seus coturnos ou dobrar as camisetas com uma pinça para obter precisão microscópica em cada dobra (sim, isso existe).
Mas os cenários de “treinamento de campo” geraram uma economia mais vibrante, semelhante à dos campos de prisioneiros de guerra. Embora muitos de nós provavelmente tivéssemos dólares em nossas carteiras, quando era chegada a hora da comida, ignorávamos nossa moeda fiduciária e nos envolvíamos em um intenso comércio de mercadorias próprias. Os produtos mais interessantes da “economia de treinamento em campo” revelaram-se vários produtos alimentares incluídos nas chamadas “Rações Prontas para Consumo” (MRE). Embora os militares muitas vezes trocassem rações operacionais inteiras (lacradas) entre si, foi a troca de alguns itens particulares contidos nos conjuntos que mais tarde me intrigaria como economista.
Repetidamente, ao longo do meu tempo na Força Aérea (e muito depois do Treinamento Militar Básico), observei durante cada exercício de treinamento de campo que sachês de um certo tipo de queijo cremoso (especialmente do sabor queijo jalapeño) emergiam espontaneamente como “o mais vendável de todos os produtos”. A explicação mais razoável, até onde eu sei, é que todos os MREs, independente do prato principal, vêm com biscoitos e algum tipo de creme ou pasta como acompanhamento. Durante meus anos de serviço militar, cada MRE incluía apenas um dos quatro cremes a seguir: pasta de amendoim cremosa, pasta de amendoim crocante e uma espécie de queijo cremoso, que poderia ser de queijo ou queijo jalapeño. Aqueles que tivessem o azar de abrir um MRE com uma simples pasta de amendoim (considerada menos desejável do que o sachê de queijo cremoso), procurariam uma contraparte comercial disposta a vendê-los o tão cobiçado laticínio – muitas vezes em troca da pasta de amendoim mais algum outro item da ração operacional.
Embora esta economia de escambo na hora das refeições raramente se espalhasse para outros aspectos da vida econômica militar, ainda podemos observar as propriedades monetárias do sachê de queijo cremoso da ração operacional neste cenário específico. Em primeiro lugar, o queijo era muito apreciado pelo seu uso direto (consumo) por quase todos os “atores”, por isso às vezes poderia até mesmo ser trocado por um prato principal (bife, frango com molho etc.). Dada a sua vida útil de vários anos, era suficientemente durável para ser guardado por certo tempo caso a gratificação fosse adiada para uma data posterior – seja para consumo ou como meio de troca. Seu peso leve e tamanho pequeno o tornavam quase tão portátil quanto papel e moeda. A oferta era também limitada (escassa), então mesmo que o seu detentor não gostasse particularmente de queijo (para uso direto), este poderia ser acumulado até uma data futura para uso indireto como meio de troca, sem perda de poder de compra.
Experiências de vida interessantes trazem cenários econômicos interessantes com os quais podemos aprender. Ninguém jamais planejou que o queijo cremoso da ração operacional fosse utilizado como meio de troca preferido entre os militares. Este queijo surgiu espontaneamente, repetidas vezes, num processo de competição entre bens num arranjo econômico que durava, em média, talvez 30 minutos (para uma refeição rápida no campo). A curta duração deste acordo econômico, combinada com o fato de os militares transportarem dólares como moeda legal em seus bolsos, significa que negócios mais sofisticados não seriam necessariamente baseados em sachês de queijo cremoso. Por exemplo, se um militar fora de serviço vendesse uma bicicleta, ele não pediria nenhum tipo de queijo em troca; ele pediria dólares. Mas mesmo neste cenário de horário limitado das refeições, uma experiência repetida muitas vezes, vemos em funcionamento a explicação mengeriana de um dinheiro que emerge espontaneamente numa economia de escambo.
Nota do Autor:
Meu amigo e tradutor de Inglês para Português, Maicon Zeppenfeld, comentou comigo durante a tradução deste artigo sobre experiências similares que ele mesmo vivenciou em seu tempo no Exército Brasileiro. Maicon relata que, durante treinamentos de campo do Exército Brasileiro, também ocorria um intenso comércio das mercadorias presentes nos conjuntos de ração operacional. Entretanto, no caso do Brasil, observava-se maior diversidade de produtos presentes nos MRE (o que tornava menor a possibilidade de encontrar os mesmos itens em diferentes tipos de MRE). Dessa forma, não havia ocorrência de um item especial que adquirisse status de meio de troca comum, como o famigerado sachê de queijo cremoso das Forças Armadas dos Estados Unidos. Maicon relata, em suas palavras, que “a situação lembrava um sistema de bolsa de valores (anterior à informatização), em que cada agente anunciava – frequentemente ao mesmo tempo – o que desejavam comprar ou vender. Por mais desordenado que fosse o ambiente de negociação, todos pareciam conseguir aquilo que desejavam em poucos minutos”.
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Por Emile Phaneuf III
Publicado originalmente em: bit.ly/49dvZDU