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Uma pá de cal na discussão em torno do artigo 142

Alguns juízes do Supremo Tribunal Federal, muitas vezes, incorrem na interpretação criativa de nossa Constituição – ou parecem extrapolar suas funções ao deliberar sobre assuntos que teoricamente não têm a ver com o Poder Judiciário. Mas uma das maiores controvérsias jurídicas da história recente do Brasil teve origem na opinião de um jurista respeitado e celebrado por todos os participantes do mundo jurídico. Estamos falando de Ives Gandra Martins, que em 2019 defendeu a tese de que o artigo 142 da Constituição Federal conferia às Forças Armadas a condição de poder moderador.

Trata-se de uma interpretação para lá de criativa. O tal artigo versa sobre o funcionamento do Exército, Aeronáutica e Marinha, sem resvalar em tal tema. O cerne da questão talvez esteja no primeiro parágrafo, que diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Para o jurista, um conflito entre poderes poderia ser uma ameaça à Nação – e as Forças Armadas, assim, deveriam ser chamadas para moderar o desentendimento. Convenhamos: uma verdadeira viagem na maionese. Em um e-mail enviado ao final de 2022 ao major Fabiano da Silva Carvalho, por sinal, Gandra defendeu exatamente essa tese.

Ontem, porém, o STF jogou uma pá de cal nessa discussão. Pelo seu plenário virtual, já obteve maioria de votos para rejeitar a teoria de que as Forças Armadas sejam um poder moderador. Já são seis votos a favor desse entendimento, incluindo o de André Mendonça, que foi indicado à Corte pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. No dia 8, continua a votação e a chance de termos uma unanimidade em torno deste assunto é grande. A única dúvida fica por conta do ministro Kassio Nunes Marques. Caso ele vote contra, achando que os militares exercem o tal poder moderador, o placar será acachapante: onze votos a um.

Em seu voto, o decano Gilmar Mendes afirmou que estava perplexo com a necessidade de o Supremo ter de se manifestar sobre o tema. “A hermenêutica da baioneta não cabe na Constituição. A sociedade brasileira nada tem a ganhar com a politização dos quartéis e tampouco a Constituição de 1988 o admite”, disse.

O ministro Luiz Fux, relator do processo, que teve início em 2020, por iniciativa do PDT, disse que as Forças Armadas são uma instituição e não um Poder. “Qualquer instituição que pretenda tomar o Poder, seja qual for a intenção declarada, fora da democracia representativa ou mediante seu gradual desfazimento interno, age contra o texto e o espírito da Constituição”, afirmou.

No relatório de Fux, há um argumento irrefutável – o de que a Carta não encoraja a ruptura democrática.

A Constituição é de 1988. Foi escrita por parlamentares eleitos com esse propósito, no primeiro pleito após o fim da ditadura militar. O clima era totalmente contrário aos militares, tanto que o único partido a defender o governo anterior foi o PDS, que elegeu apenas 33 deputados, contra 118 do PFL e 260 do PMDB.

Na promulgação do texto constituinte, o então presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, proferiu em discurso: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

Vamos repetir as palavras do dr. Ulysses: “ódio e nojo”. Em um clima desses, os constituintes iram escrever um texto que concederia às Forças Armadas a capacidade de moderar os Poderes da Nação?

Essa, evidentemente, é uma pergunta retórica.

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