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Com o leilão do arroz, o governo passa a fabricar as próprias crises

Exatamente vinte anos atrás, publiquei uma reportagem de capa na revista Época com o seguinte título: “Como o governo piora as crises”. A matéria mostrava os bastidores das trapalhadas planaltinas que complicaram determinados episódios de grande repercussão política. Hoje, no terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é possível ver que os petistas levaram este padrão a um novo patamar: passaram a fabricar as próprias crises. O exemplo do leilão de arroz realizado na semana passada — e cancelado ontem — é um exemplo disso.

Lula encasquetou que o governo teria de comprar arroz no exterior e vendê-lo a um preço tabelado após a tragédia climática que houve no Rio Grande do Sul (estado responsável por grande parcela do fornecimento do produto no cenário nacional). Foi avisado de que não haveria desabastecimento, pois a maior parte da colheita já havia sido realizada, com um crescimento significativo em relação aos resultados de 2023. Alertou-se também o presidente que, caso as autoridades conseguissem fazer um leilão em junho, o arroz comprado só estaria nas prateleiras do comércio em setembro. Por fim, alguns especialistas publicaram artigos na imprensa mostrando que vender pacotes de arroz a um preço menor que os praticados no mercado poderia prejudicar os produtores gaúchos.

Nada disso, porém, sensibilizou Lula, que deu o sinal verde para que o leilão fosse realizado na última quinta-feira, com a compra de 263.000 toneladas. Até aí, tudo bem. Seria apenas uma decisão errada do ponto de vista econômico e logístico. Mas o que já era ruim poderia piorar. Das quatro empresas que venceram o certame, apenas uma era de fato importadora. As três restantes eram uma loja de queijos de Macapá (Amapá), uma fábrica de sucos de São Paulo e uma locadora de veículos em Brasília. Por enquanto, nada ilegal. Mas bastante suspeito.

Evidentemente, começaram a pipocar reportagens sobre o caso e Lula reagiu, cobrando a equipe e exigindo punição dos responsáveis pelo fiasco. Diante disso, está balançando no cargo o diretor de abastecimento da Conab, Thiago dos Santos, responsável pelo leilão, uma vez que o secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, o ex-ministro Neri Geller já foi exonerado (o dono da corretora que realizou o certame foi assessor de Geller e sócio do filho do secretário em outras empresas).

Mesmo que o processo de compra tenha sido viciado por seus organizadores, a culpa dessa crise é exclusivamente do presidente: foi ele quem insistiu para que se comprasse arroz do exterior e a toque de caixa, o que pode ter aberto a possibilidade de um resultado sob suspeita. Na dúvida, o Planalto decidiu cancelar tudo.

Curiosamente, o que motivou a distribuição de arroz a preço tabelado foi a busca por uma pauta positiva. O tiro, no entanto, saiu pela culatra e jogou o governo em um episódio que tem tudo para se transformar em um escândalo de duração razoável.

O espantoso, porém, é perceber que os organizadores não previram que vencedores inusitados poderiam ser revelados, escrutinados e criticados pela imprensa. Isso tudo ganha maior tração quando lembramos que um dos principais calcanhares de Aquiles deste governo é justamente a corrupção – dada a exposição que o PT recebeu durante a Operação Lava-Jato. Vamos ver se, daqui para frente, o governo aprendeu sua lição e vai deixar de fabricar as próprias crises. Uma coisa, porém, é certa: apesar de o leilão ter sido cancelado, esse caso não está encerrado. O Ministério Público e a Polícia Federal têm de entrar em campo e botar os pingos nos is.

Edição de maio de 2004 da revista Época

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