Reconstruir de forma mais eficiente e razoável exigirá assimilar o preço das decisões das pessoas sobre onde viver e trabalhar
Nasci em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Porto Alegre fica em frente ao Lago Guaíba, que é formado por cinco rios. Em 1941, a cidade sofreu uma trágica enchente. O lago Guaíba subiu quase 5 metros acima da média, e um quarto da população perdeu suas casas. O trauma de tal evento levou os governos federal, estadual e local a construir diques, muros e sistemas de bombas para proteger a cidade de um “evento único em 100 anos”. De acordo com a estimativa, diques e muros de 6 metros de altura ofereceriam essa proteção.
Desde 1941, houve muitas outras tempestades e inundações, mas os investimentos, que eu diria que estão na casa de um bilhão de dólares, foram suficientes para evitar danos significativos até poucas semanas atrás. No início de maio de 2024, chuvas torrenciais elevaram as águas do Guaíba a um recorde de 5,5 metros. As enchentes a montante e no Lago Guaíba mataram centenas, deixaram mais de 600 mil desabrigados e destruíram infraestrutura e outros bens de capital em todo o estado.
Em Porto Alegre, o sistema de proteção contra enchentes falhou miseravelmente; um terço da cidade ficou debaixo d’água, o aeroporto está fechado indefinidamente e a cidade ficou com apenas uma conexão terrestre com o resto do país. Duas semanas depois de tudo isso começar, a distribuição de água e eletricidade ainda não voltou para a maior parte da cidade e dezenas de milhares estão desabrigados.
Por que as medidas de proteção contra enchentes falharam? Há muitas razões diferentes, mas, no quadro geral, incentivos desalinhados dentro do governo levaram a fracassos catastróficos e tragédia. Ainda não sabemos a extensão total da tragédia, mas, em retrospectiva, parece evidente que a tragédia era esperada.
No rescaldo do desastre de 1941, houve um sentido de urgência em abordar o problema e evitar outra tragédia semelhante. Isso contribuiu para o poder de lobby das construtoras, permitindo que o sistema fosse construído. Infelizmente, com o tempo, a memória da enchente de 1941 se perdeu. Não mais pressionados por nenhum lobby poderoso, os vereadores negligenciaram o financiamento adequado da manutenção dos diques, muros e estações de bombeamento.
Durante algum tempo, os funcionários públicos ainda estavam oficialmente à frente desse serviço, mesmo que seu orçamento fosse inadequado. Em seguida, um prefeito não muito esperto propôs extinguir o departamento responsável pela manutenção do sistema, transferindo suas atribuições para a autarquia que produz e distribui água potável na cidade e mantém o esgoto, a drenagem e, a partir daquele momento, também a prevenção de enchentes. Pareceu-lhe uma boa ideia porque essa concessionária pública é financiada com uma taxa sobre o consumo de água. Em vez de manter o sistema de proteção contra enchentes por meio de impostos devidamente votados pela Câmara Municipal, ele poderia ser financiado por meio de um subsídio cruzado. O que não é visto não é lembrado, os investimentos necessários não foram feitos e o sistema silenciosamente corroeu. Mas todo mundo estava feliz até que a tragédia aconteceu, e as pessoas começaram a se perguntar como isso aconteceu.
O que acabou de acontecer em Porto Alegre pode servir de alerta sobre as muitas maneiras pelas quais a ação coletiva pode dar errado. Nenhum político simplesmente decidiu construir um sistema defeituoso de prevenção de enchentes, ou permitir que o existente se deteriorasse. Mas os incentivos para projetar e construir um sistema são, de acordo com os critérios definidos no estudo original, não estavam lá. De fato, na medida em que um projeto adequado custa dinheiro, tanto os empreiteiros quanto os políticos tinham fortes incentivos para ser negligentes. Os inspetores nem sempre estavam cientes das razões técnicas para algumas exigências e, em geral, poucas pessoas estavam prestando atenção. A situação com a manutenção é ainda mais trágica. Era perfeitamente previsível que deixar um assunto tão importante para um ente de segundo escalão com outras responsabilidades, a ser financiado por uma taxa oculta nas contas de água, se revelasse uma receita para um colapso grave no sistema.
Se esta é uma interpretação precisa dos acontecimentos, que lições de valor universal podemos tirar deles?
Os equívocos que levaram ao fracasso nesse caso, aliados a reflexões mais amplas sobre o comportamento humano, podem apontar para melhores princípios de governança pública. Esses princípios devem ser informados por muito mais do que somente os eventos descritos acima. Eles precisam considerar reflexões sobre o comportamento humano adequado.
Uma maneira interessante de abordar o problema é considerando como se pode fazer para reconstruir Porto Alegre. Para responder a essa pergunta, precisamos considerar o que seria mais econômico: reconstruir nos mesmos lugares onde ficavam os edifícios danificados, com medidas de proteção eficazes; ou reconstruir em outro lugar e deixar as áreas baixas para usos temporários, como parques.
Aqui nos deparamos com uma questão epistemológica verdadeiramente problemática. Duvido que alguém saiba calcular isso se não colocarmos um “preço” na construção em uma várzea. Há muitas maneiras de fazer isso. Uma óbvia é exigir que qualquer pessoa com uma casa, uma loja ou um armazém construído em uma várzea compre um seguro contra enchentes no mercado privado. Essa parece ser uma boa maneira de colocar um “preço” em tal decisão. Qualquer americano que viva em uma planície alagável sabe disso, apesar das distorções criadas quando o seguro contra enchentes nos EUA foi nacionalizado.
Em seguida, consideremos quais os princípios que devem informar as formas de financiar qualquer proteção contra inundações. Aqui, outro problema fica evidente: o sistema de proteção contra enchentes era tratado como um bem público. Isso explica em grande parte os incentivos desalinhados discutidos acima. Se o governo local entregasse o serviço a empresas privadas, que seriam compensadas por uma taxa cobrada dos moradores e empresas das áreas protegidas, é muito mais provável que a construção e a manutenção fossem feitas corretamente. Isto precisamente porque a proteção contra as inundações não é um verdadeiro bem público; ou seja, seu benefício não é difuso; ele pode ser medido, os beneficiários identificados e um preço cobrado por sua provisão. Essa é a lição da aplicação universal.
Quanto menos eficiente for a proteção dessas empresas, mais caros serão os prêmios para pagar o seguro contra enchentes, e vice-versa. Assim, os moradores e empresas das áreas protegidas serão financeiramente incentivados a exigir que o governo local colabore com empresas eficientes para fornecer esses serviços.
O desenho desses arranjos que tenho em mente é semelhante aos usados para a coleta de lixo, com a diferença de que os moradores e empresas não pagam uma penalidade monetária por não exigirem uma coleta de lixo eficiente, como fariam no sistema proposto na forma de prêmios de seguro contra enchentes.
Não faço ideia se as pessoas nessas condições se mudariam para áreas com elevações mais altas. Presumivelmente, elas pesariam o custo de permanecer em seus locais anteriores contra o custo de terrenos urbanizados em altitudes mais altas, que varia significativamente de lugar para lugar. Porto Alegre, por exemplo, tem dois terços da área da cidade zoneada para agricultura ou reservas naturais, o que a torna fora dos limites para o desenvolvimento urbano. Isso muitas vezes significa que as pessoas de baixa renda não têm outra alternativa a não ser permanecer na várzea. A revisão das leis de zoneamento poderia abrir outras opções para essas pessoas.
Isso aponta para mais um problema de ação coletiva. Como concluíram há muitos anos os pesquisadores do Instituto Liberdade e Desenvolvimento no Peru, o custo de operar no setor “formal” determina o tamanho do setor “informal”. Trata-se de uma simples aplicação da lógica do pensamento à margem. Os mesmos tipos de cálculos afetam a decisão das pessoas de viver em uma planície alagável perto dos empregos e da infraestrutura urbana existentes, ou em um planalto longe de tudo. Se houver barreiras “artificiais” (legais) para desenvolver certas terras para uso urbano, as pessoas podem fazer escolhas que, de outra forma, seriam imprudentes ou apenas ineficientes.
Tudo isso muda se as pessoas pagarem os custos reais de bens privados que, à primeira vista, parecem bens públicos. Nesse caso, em vez de pagar pela proteção contra enchentes com impostos cobrados de pessoas não diretamente afetadas pelas enchentes, eles poderiam ter cobrado mais diretamente dos beneficiários dessa infraestrutura. Isso não só resolveria o problema da alocação econômica, como o faria da forma mais justa possível.
Alguns podem reclamar que me falta compaixão com as infelizes vítimas das enchentes. Discordo, mas não cabe aqui discutir isso. Vou dizer que casos difíceis fazem leis ruins. Aqui está mais uma lição que deve informar nossas visões de ação coletiva: soluções que são necessárias em emergências não devem governar a sociedade em tempos normais.
Reconstruir a partir de tragédias como a que acabou de acontecer em minha cidade natal, da forma mais eficiente e razoável possível, exigirá uma decisão de internalizar o preço das decisões das pessoas sobre onde viver e trabalhar. Isso criará incentivos para investimentos adequados na prevenção de inundações. Como em qualquer outro caso de ação coletiva, a solução está em expandir a liberdade das pessoas e esperar que elas paguem os custos reais pelo que querem.
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Por Leonidas Zelmanovitz
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/Rl1DE