Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, ensina que as elites burocráticas e estatais brasileiras controlam o poder para mantê-lo dentro de um círculo fechado
Ao ler o artigo “Articular uma saída para o País“, uma contradição fundamental emerge: a defesa simultânea de uma atuação excepcional do Supremo Tribunal Federal (STF) frente a supostas ameaças à democracia, e a condenação do que os autores chamam de “automatismo” das instâncias superiores em relação à Lava Jato. O que temos aqui é um exercício retórico que se desmorona quando analisado à luz da razão.
Primeiramente, o artigo utiliza o estratagema da afirmação sem prova (Schopenhauer, 2ª técnica), ao sugerir que o STF atuou de forma necessária para “evitar um golpe” sem, no entanto, fornecer evidências concretas de que tal golpe estava em iminência real. A afirmação não passa de uma suposição conveniente, um argumentum ad metum (apelo ao medo), que visa a justificar uma atuação fora das atribuições constitucionais do STF, algo que, sob qualquer interpretação normativa séria, deveria ser veementemente criticado. Ademais, o quebra-quebra de 08 de janeiro, amplamente citado como tentativa de golpe, carece de um fator essencial: armas. Nenhuma das pessoas condenadas até agora estava portando armas, e não existe golpe de Estado sem armamento, um ponto fundamental que é convenientemente ignorado pelos autores.
A contradição mais flagrante, porém, surge quando o artigo critica o “automatismo” das instâncias superiores diante dos abusos da Lava Jato. Aqui, os autores caem no estratagema da autocontradição (Schopenhauer, 8ª técnica). Se o STF, como afirmam, atuou corretamente ao extrapolar suas funções para “salvar a democracia”, por que seria condenável o ativismo de outros tribunais para atender a anseios populares em momentos como a Operação Lava Jato? Na verdade, os autores usam a palavra “automatismo” como um eufemismo para “ativismo político”. O problema da Lava Jato foi justamente o abandono das leis em nome de uma política judicial que buscava satisfazer o sentimento das massas, como escrevi em artigo para o CONJUR, onde ressaltei que o sentimento popular jamais deve conduzir a justiça. Portanto, os tribunais não atuaram de forma automatizada, mas politizada, atendendo ao clamor público em detrimento das normas legais, exatamente o que os autores parecem querer justificar em outros contextos.
Além disso, o artigo peca pelo uso de uma ambiguidade estratégica (Schopenhauer, 20ª técnica). Ora, defende-se que o STF “precisa voltar à normalidade”, mas não se define claramente o que significa “normalidade” no contexto da atuação do Judiciário. Ao sugerir que o STF deve ser “mais aberto à perfeição”, os autores se utilizam de um discurso vago e metafórico que pouco contribui para o debate jurídico concreto. Tal uso da ambiguidade é uma tentativa de evitar um compromisso claro com a aplicação rigorosa das leis, recorrendo à abstração para evitar a responsabilização de um poder que, por definição, deveria ser limitado pela Constituição.
O problema central aqui é que, ao invocar termos como “defesa da democracia” e “condenação de corruptos impunes”, os autores utilizam o estratagema de apelar às consequências (Schopenhauer, 29ª técnica). Ou seja, eles insinuam que, se o STF não agir de maneira excepcional, o resultado seria o colapso do regime democrático ou o fortalecimento da corrupção. Isso, contudo, é um falso dilema. O papel do Judiciário, claro, inclui a defesa da moralidade pública quando provocado, como prevê o direito administrativo. No entanto, ele não deve se motivar por cruzadas ou pretensos “combates à corrupção” que, muitas vezes, são desvirtuados pela pressão popular ou por interesses políticos. A função do STF é interpretar o Direito à luz da Constituição e das leis, não se engajar em movimentos que busquem obter efeitos políticos ou populistas sob o pretexto de combater a corrupção.
Os autores, sem perceber, cometem outro estratagema de Schopenhauer: o argumentum ad hominem dissimulado (27ª técnica), ao sugerir que as decisões mais ativistas do STF seriam justificáveis quando comparadas aos supostos abusos da Lava Jato. Aqui, em vez de discutir os princípios jurídicos de maneira racional, os autores tacitamente tentam desviar a crítica ao STF atacando a Lava Jato e, por extensão, seus defensores. A crítica deveria se concentrar em apontar, de maneira técnica e objetiva, se o STF agiu ou não dentro dos limites de suas atribuições, em vez de sugerir que suas ações são aceitáveis porque o “outro lado” também cometeu excessos.
Por fim, o artigo ignora uma questão primordial: a atuação judicial deve ser pautada na legalidade, e não em um suposto imperativo moral ou político. O problema de elevar o Judiciário ao papel de guardião de uma “democracia” vaga e indefinida é que isso abre precedentes perigosos para a politização do Direito. Ao se afastar da aplicação estrita das leis e dos princípios constitucionais, o STF arrisca perder a legitimidade que lhe resta, pois sua função primordial é, e sempre será, cumprir as normas jurídicas estabelecidas.
Como já mencionei em outros artigos, a solução para a crise de confiança no STF não passa por um retorno à excepcionalidade, mas por um retorno à observância estrita das leis e regras processuais. A justiça só será restaurada quando o Judiciário reconhecer seus limites, evitando a tentação de governar sob a bandeira da “defesa da democracia”. As regras jurídicas existem precisamente para evitar que a justiça se transforme em uma questão de opinião ou moralidade circunstancial. E, enquanto essa distinção não for respeitada, continuaremos a ver um Judiciário cada vez mais desacreditado.
Além disso, a verdadeira questão sobre a confiança e a credibilidade do Judiciário não se limita a discursos sobre “defesa da democracia” ou “combate à corrupção”. O Judiciário só terá credibilidade se agir com legitimidade e enforcement. Como destaquei em meu artigo no Instituto Liberal, não basta que as decisões judiciais tenham força coercitiva para serem respeitadas; é necessário que essas decisões sejam vistas como legítimas aos olhos da sociedade, algo que só é alcançado com a observância fiel às leis e ao devido processo legal. A politização das decisões judiciais e o ativismo exacerbado destroem essa legitimidade, criando um ciclo de desconfiança e descrédito nas instituições.
Em Anatomia do Estado, Murray Rothbard desconstrói a imagem de um Estado benevolente que busca o bem-estar geral, revelando-o como um aparato que se sustenta pela coerção e pelo controle das massas em benefício de uma elite. Assim como o Estado, o Judiciário, quando se afasta de suas funções legítimas e abraça o ativismo, torna-se mais um instrumento de poder do que de justiça. As instituições deixam de agir conforme suas atribuições para seguir uma agenda de perpetuação de poder, muitas vezes à custa da liberdade individual e da confiança pública.
Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, nos ensina que as elites burocráticas e estatais brasileiras controlam o poder com o objetivo de mantê-lo dentro de um círculo fechado de interesses. Quando o Judiciário se desvia de sua função constitucional e se alia a esse mecanismo de controle, como bem diagnosticado por Faoro, ele deixa de ser um árbitro imparcial e se torna parte do aparato que mantém essa elite no poder. Tanto Rothbard quanto Faoro nos alertam para o perigo de uma estrutura estatal que, ao invés de servir o cidadão e a justiça, torna-se uma força a serviço de si mesma. Se o Judiciário quiser restaurar sua credibilidade, deverá rejeitar o caminho do ativismo e retornar ao papel de guardião da lei, e não de um poder político travestido de árbitro imparcial.
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Por Leonardo Corrêa
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/vOziV