O escritor Oscar Wilde costumava dizer que “a única diferença entre o santo e o pecador é que todo santo possui um passado e todo pecador tem um futuro”. O sarcasmo do escritor irlandês teria vida longa não fosse a invenção da internet. O mundo digital conseguiu perpetuar acontecimentos que antes seriam enterrados pela implacável passagem do tempo. O presente, décadas atrás, se transformaria inevitavelmente em passado e episódios da vida privada ficariam escondidos no anonimato gerado pelo desenrolar dos anos.
A internet, porém, mudou este fenômeno.
Em primeiro lugar, os servidores registram há pelo menos trinta anos fatos que ocorreram na história, com detalhes profundos, com direito até a imagens. Mas há também boatos e fake news que parecem ter vida própria e são revividos de tempos em tempos. Por isso, determinados casos nunca caem no esquecimento, pois há sempre gente fazendo pesquisas na rede e acaba topando com histórias que poderiam ser ignoradas pelas gerações futuras.
Mas há outro problema: há assuntos que são revividos de forma constante. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal julgou um processo movido pela família de uma jovem assassinada em 1958, cujo caso era constantemente registrado pelos veículos de comunicação. Os familiares da vítima desejavam proibir a divulgação deste episódio e foram derrotados no STF pelo placar de nove a um.
Anos atrás, uma central de podcasts criou uma série sobre o assassinato de Ângela Diniz por Raul “Doca” Street, o que relembrou o crime, colocando-o entre os assuntos mais comentados do país. Essa mesma produtora de conteúdo, agora, lançou um programa no qual uma escritora narra o final de seu casamento, contando que seu ex-marido se gabava de traições conjugais em um grupo de e-mails com 15 amigos, entre os quais autores relativamente famosos. O podcast gerou uma saraivada de comentários nas redes sociais e acabou gerando um mea culpa público do ex-marido e manifestações de alguns dos envolvidos.
Dessa forma, um acontecimento de 14 anos atrás foi revivido e remexido, trazendo à tona dores, traumas e arrependimentos – além de um constrangimento atroz para a empresa a qual o ex é sócio, uma editora de livros de prestígio. Aqui, vale um parênteses: nada contra o trabalho da central de podcasts, cuja função é justamente o de reviver fatos esquecidos ou desconhecidos pelo público.
A sociedade deve se preparar para mais dessas manifestações. O passado nunca mais será enterrado – e os internautas serão cada vez mais implacáveis ao julgar os erros alheios, como o do ex-marido da escritora.
Indiscrições íntimas, no entanto, são reveladas ao público há muitos anos – e não apenas pelas publicações de fofocas e mexericos. Em 1983, por exemplo, a escritora, roteirista e diretora de cinema Nora Ephron lançou o livro “Heartburn”, no qual contava detalhes de seu casamento com o jornalista Carl Bernstein (sim, o coautor do livro “Todos os homens do presidente”, que revelou o escândalo “Watergate”, responsável pela renúncia do presidente americano Richard Nixon).
Os nomes dos personagens foram trocados, mas é uma história baseada em fatos – e mostra com detalhes a traição do marido com a esposa de um diplomata inglês. O livro, impulsionado pelas circunstâncias, foi um sucesso e virou filme (“A difícil arte de amar”), com Meryl Streep e Jack Nicholson (imagem).
Anos atrás, Carl Bernstein veio ao Brasil e fez uma palestra. Ao final de sua exposição, fui falar com ele e disse que havia escrito um personagem em meu livro baseado nele. Naquele momento, senti que ele ficou tenso e começou a fazer várias perguntas sobre o tal personagem. Demorei para perceber que esse desconforto tinha surgido por conta de seu divórcio. Ele se tranquilizou quando disse que se tratava de um jornalista veterano, que morava em Washington e era mentor de um jovem profissional.
Esses episódios, porém, mostram que vivemos em tempos implacáveis e de memória eterna. Um erro cometido hoje é uma pisada de bola que se eternizará pelos anos à frente. Por isso, pense bem naquilo que você fará daqui para frente. Se for algo ruim, existe a chance de chegar às redes sociais – e começar um processo de cancelamento que nunca mais terá fim.