Moedas digitais de bancos centrais não são neutras. Blockchains também carregam riscos que afetam desproporcionalmente os mais vulneráveis
Pesquisas recentes apontam uma tendência preocupante: 84% dos americanos têm medo de exercer sua liberdade de expressão, de acordo com uma pesquisa de opinião do New York Times em parceria com o Siena College. Embora esse dado, por si só, já seja alarmante, ele é apenas a ponta do iceberg de um problema mais amplo – a erosão gradual das liberdades individuais. Esse declínio vai além da liberdade de expressão, afetando também o pensamento, a cognição e a autonomia econômica. À medida que essa erosão avança, novas tecnologias ameaçam acelerá-la. Entre elas está o desenvolvimento das Moedas Digitais de Banco Central (Central Bank Digital Currencies – CBDCs), tema central nos recentes debates sobre políticas monetárias. Embora sejam promovidas como inovações para ampliar a inclusão financeira e a eficiência do sistema, as CBDCs levantam preocupações legítimas sobre liberdade, privacidade e o aumento do poder governamental.
Monopólio estatal e o mercado
Para compreender os potenciais perigos da adoção das Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs), é essencial revisitar a definição de poder estatal de Max Weber. Em A Política como Vocação, Weber descreve o estado como a instituição que reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. Essa definição é particularmente relevante no contexto dos sistemas financeiros. Historicamente, os mercados prosperaram graças à concorrência, à inovação e à descentralização da política monetária. No entanto, as CBDCs representam uma tentativa do estado de monopolizar e centralizar as transações financeiras sob um único controle digital.
A senadora Kirsten Gillibrand argumenta que uma CBDC poderia ampliar a inclusão financeira, reduzir os custos de transação e aprimorar a política monetária. Embora esses benefícios possam soar atraentes para aqueles menos familiarizados com a economia, eles ocultam riscos significativos. Como alertou Friedrich Hayek, o controle governamental sobre os sistemas econômicos é um caminho perigoso, que inevitavelmente leva a uma maior centralização e à redução das liberdades individuais. A “mão invisível” do mercado tem se mostrado muito mais confiável do que a mão visível da intervenção estatal. A questão que se impõe é: estamos dispostos a trocar eficiência por liberdade?
Lições do eNaira nigeriano
Basta olhar para o eNaira, da Nigéria, para ter um vislumbre do possível futuro das Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs). Lançado em 2021 após a proibição das criptomoedas, o eNaira prometia inaugurar uma nova era de estabilidade financeira. No entanto, acabou se tornando uma ferramenta de controle governamental. Inicialmente promovido como uma forma de reduzir o uso de dinheiro físico e incentivar pagamentos digitais, o projeto logo enfrentou obstáculos significativos, como volatilidade, altos custos de transação e falta de transparência devido ao seu blockchain fechado e centralizado.
O governo nigeriano impôs restrições rigorosas às carteiras digitais do eNaira, incluindo limites diários de saque e restrições de saldo. Apesar das promessas de que o dinheiro físico continuaria em circulação até que o eNaira estivesse plenamente funcional, mais da metade da população acabou presa com cédulas antigas sem valor. Isso deixou milhões de nigerianos em situação de pobreza sem acesso a serviços financeiros básicos. Em vez de promover inclusão, o eNaira aprofundou as desigualdades econômicas já existentes.
Esse caso traz uma lição essencial: as CBDCs não são tecnologias neutras. Elas carregam riscos inerentes que afetam desproporcionalmente os mais vulneráveis. Para países em desenvolvimento como a Nigéria – onde mais de 90% da população vive com menos de US$ 6,85 por dia -, as consequências de uma moeda digital mal implementada podem ser devastadoras. Mas mesmo em nações desenvolvidas, como os Estados Unidos, políticas desse tipo representam sérios riscos.
CBDC nos Estados Unidos
Embora os Estados Unidos ainda não estejam prestes a adotar uma CBDC em larga escala, o Federal Reserve já explorou essa possibilidade. O Bank of America sugere que um dólar digital é improvável no futuro imediato. No entanto, o próprio Federal Reserve reconhece diversos riscos associados às CBDCs, como impactos na estabilidade financeira, no custo e na disponibilidade de crédito, além da segurança do sistema financeiro como um todo. Esses riscos não são meramente teóricos; eles se baseiam tanto na experiência histórica quanto na lógica econômica.
Economistas da Escola Austríaca há muito defendem que uma moeda sólida deve surgir naturalmente pelo mercado, e não por coerção estatal. Ludwig von Mises afirmou que “a excelência do dinheiro está no seu valor além do mero meio de troca.” O papel do dinheiro é facilitar trocas voluntárias e armazenar valor – não servir como ferramenta de monitoramento e intervenção governamental. Uma CBDC representa um afastamento radical desses princípios, criando um sistema monetário inteiramente dependente da política estatal.
Além dos riscos financeiros, as CBDCs representam uma ameaça existencial à privacidade. O Federal Reserve afirma que uma futura CBDC buscaria equilibrar transparência e privacidade do consumidor. No entanto, como argumentou Murray Rothbard em A Ética da Liberdade, não há um “equilíbrio” a ser alcançado quando se trata de privacidade. O direito à propriedade implica o direito de controlar como essa propriedade é usada, sem interferência externa. Uma CBDC mina esse direito fundamental ao permitir que o estado monitore cada transação, eliminando, na prática, a privacidade financeira.
Paralelos históricos: lições sobre a moeda fiduciária e o ouro
A ascensão do dinheiro fiduciário oferece paralelos históricos importantes para o atual debate sobre as CBDCs. Assim como as moedas fiduciárias substituíram o dinheiro lastreado em commodities, as CBDCs poderiam substituir o dinheiro em espécie e outras formas de moeda descentralizada. A transição para o dinheiro fiduciário foi marcada por excessos governamentais e instabilidade monetária. Como observou Frédéric Bastiat: “O estado é a grande ficção pela qual todos tentam viver às custas de todos os outros.” Essa ficção se torna ainda mais perigosa quando aplicada ao próprio dinheiro.
A crítica da Escola Austríaca ao dinheiro fiduciário se aplica diretamente às CBDCs. O dinheiro fiduciário – ao contrário do ouro – não possui valor intrínseco e está sujeito à manipulação por autoridades centrais. Da mesma forma, uma CBDC não passaria de um token digital, totalmente dependente da política governamental para manter seu valor. Isso cria um incentivo para os governos expandirem a oferta monetária e corroerem o poder de compra dos cidadãos comuns. Com o tempo, essa dinâmica pode levar a uma instabilidade econômica generalizada e a um aumento da agitação social.
Como se opor a CBDC: a abordagem austríaca
Diante desses riscos, como podemos nos opor de forma eficaz ao desenvolvimento das CBDCs? A abordagem da Escola Austríaca oferece um caminho claro. Antes de tudo, a educação é fundamental. Muitas pessoas não possuem um entendimento básico de economia, o que as torna vulneráveis a narrativas enganosas sobre os supostos benefícios das moedas digitais estatais. É essencial expor os riscos e defender soluções alternativas baseadas nos princípios de livre mercado.
A mobilização e a resistência também são essenciais. Precisamos defender ativamente as poucas liberdades que ainda possuímos. Isso significa apoiar políticas que promovam a privacidade financeira, combater a vigilância estatal e incentivar o desenvolvimento de sistemas financeiros descentralizados. Também significa resistir à tentação de trocar liberdade por conveniência. A história mostra que, uma vez que se abre mão da liberdade, raramente ela é recuperada sem luta.
Por fim, devemos promover soluções voluntárias de mercado. O setor privado já desenvolveu diversas alternativas às moedas digitais controladas pelo estado, desde criptomoedas descentralizadas até sistemas de pagamento inovadores. Essas soluções representam a melhor esperança para preservar a liberdade financeira na era digital. Ao incentivar a concorrência e a inovação, podemos construir um sistema financeiro mais resiliente e inclusivo — um sistema que empodera os indivíduos em vez de subjugá-los.
À medida que o debate sobre as CBDCs se intensifica, é crucial mantermos a vigilância. Enquanto seus defensores enfatizam os supostos benefícios, não podemos perder de vista os riscos. As lições da história são claras: o controle centralizado do dinheiro leva à instabilidade econômica, à perda de liberdades individuais e ao aumento do poder governamental. Ao adotarmos os princípios da Escola Austríaca, podemos traçar um caminho diferente — um caminho que prioriza a liberdade, a inovação e a autonomia do indivíduo.
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Por Pedro Saltini
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/43xke