Por Karla Mendes
DOURADOS, Mato Grosso do Sul (Thomson Reuters Foundation) – As condições de encarceramento de indígenas no país devem piorar no governo do presidente Jair Bolsonaro, afirmam ativistas e advogados, o que agrava situação encontrada em investigação da Thomson Reuters Foundation que revela que muitos indígenas cumprem pena sob acusações duvidosas e sem acompanhamento de um advogado.
Com a terceira maior população carcerária do mundo, as condições de superlotação e violência nas prisões brasileiras aumentam e a situação dos detentos indígenas é ainda pior, pois a eles é negado suporte linguístico e jurídico, levando a penas mais severas e indevidas.
Em uma rara visita autorizada à Penitenciária Estadual de Dourados, no Mato Grosso do Sul, a Thomson Reuters Foundation entrevistou cinco detentos indígenas, que relataram que não tinham um advogado quando foram levados para a prisão.
Os detentos também denunciaram a falta de medicamentos e ameaças de violência pela polícia, e alguns foram forçados a confessar crimes que nunca cometeram.
A defensora pública Neyla Ferreira Mendes analisou os processos dos 131 indígenas presos na Penitenciária Estadual de Dourados –com capacidade para 2.400 detentos– e afirma que nenhum deles tinha intérpretes nem laudo antropológico, ambos exigidos por lei.
Alan Gomes, um indígena Kaiowá condenado a 10 anos de reclusão por estupro –segundo documentos a que a Thomson Reuters Foundation teve acesso– disse não ter ideia de que crime foi acusado.
“Não tenho advogado… O dia que me chamaram na delegacia, eu fui de medo… (Falaram:) ‘se você não assinar esse crime você vai apanhar’”, disse ele, questionando a conduta da polícia.
“Eu não consegui entender o que estava escrito no papel. Não fui eu que cometi esse crime”, disse Gomes, que está preso há dois anos.
Os relatos dos detentos não puderam ser corroborados de forma independente pela Thomson Reuters Foundation, e Manoel Machado da Silva, diretor da Penitenciária Estadual de Dourados, disse que as queixas não procedem.
“O tratamento (de presos indígenas) aqui é humanizado, atendemos a todas suas necessidades… assistência médica e social, tratamento odontológico”, disse ele à Thomson Reuters Foundation.
PREOCUPAÇÕES CRESCENTES
O Ministério da Segurança Pública não comentou as alegações feitas à Thomson Reuters Foundation em entrevistas com detentos indígenas, seus líderes tribais, especialistas da ONU e representantes legais.
Uma porta-voz disse que a maioria das prisões no Brasil é administrada localmente, por Estados ou municípios, e o ministério não tem jurisdição sobre esses detentos.
Estima-se que as prisões brasileiras abriguem mais de 700.000 presos em um sistema com capacidade para menos de 400.000.
Dados do governo de 2016 mostraram que havia cerca de 600 presos indígenas, ou 0,08 por cento do total de detentos.
Mas ativistas afirmam que os dados são subestimados, já que muitos indígenas presos não foram identificados como tal quando entraram na cadeia, o que torna mais difícil rastreá-los.
As preocupações com a assistência aos indígenas aumentaram desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, tirando o poder da Fundação Nacional do Índio (Funai) de decidir sobre reivindicação de terras em sua primeira semana no cargo.
O Brasil é alvo constante de acusações de cerceamento de direitos à sua população indígena de cerca de 900 mil habitantes, em uma população de 210 milhões.
A Constituição de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas, mas grupos de defesa de direitos humanos afirmam que na prática os povos originários enfrentam cada vez mais ameaças, o que coloca em xeque suas terras ancestrais e seus meios de subsistência.
Mendes disse que a situação dos detentos indígenas “certamente se agravará ao não aceitar as diferenças culturais e ao esvaziar a Funai”.
Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador da Justiça Federal no Mato Grosso do Sul, alertou que a posição do novo governo pode influenciar os processos judiciais e provocar o “encarceramento em massa” dos povos indígenas.
“RACISMO INSTITUCIONAL”
A advogada Erika Yamada, membro do Mecanismo de Especialistas da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, disse que é forte a discriminação contra os indígenas nas prisões brasileiras, com os detentos muitas vezes sem acesso a advogados e intérpretes e sem um suporte linguístico e cultural especializado.
“Há um racismo institucional em todos os níveis em relação aos povos indígenas, tanto que o tema é pouco discutido, está invisibilizado”, disse.
Almeida disse que a falta de intérpretes é usada para fabricar depoimentos, citando um líder indígena que apareceu como testemunha em mais de 100 investigações policiais.
“Qual a possibilidade de uma pessoa ter sido testemunha de mais de 100 crimes?”, disse.
Gomes, o detento, disse que na prisão de Dourados a maioria dos presos indígenas não entende a legislação criminal e nem ao menos a língua portuguesa.
“Muitas vezes nós não temos o entendimento da lei, então muitas vezes nós somos chamados pela autoridade na cidade, nós assinamos um papel e nós somos já um criminoso”, disse ele à Thomson Reuters Foundation, olhando através das grades da prisão.
Gustavo Menezes, técnico da Funai, disse que, além de não contar com ajuda linguística e jurídica, as prisões deixam os detentos indígenas apartados de sua cultura e costumes.
“Estão cortando sua ‘indianidade’. Se o indígena não está nu e fala português o juiz considera que ele não é indígena… Ou afirma que é um indígena “aculturado” e suspende todos os seus direitos específicos”, disse Menezes.
“É uma violação de direitos humanos… Além da condenação, eles sofrem mais nas prisões. É muito raro eles receberem visitas de seus familiares devido a dificuldades de transporte e falta de informação.”
Ele afirma que é difícil para a Funai ter o controle dos detentos indígenas, pois muitos não foram registrados como indígenas quando entraram na cadeia e muitos não têm sequer documentos.
Na Penitenciária Estadual de Dourados, há uma ala específica para indígenas. Em outras prisões do país, como em Roraima, os indígenas compartilham celas com não indígenas, o que piora ainda mais a situação dos detentos, explica o antrópologo Stephen Baines, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).
“Quando não há alas específicas, muitos indígenas acabam escondendo sua identidade para não sofrer dupla discriminação: por serem indígenas e por serem pobres”, disse Baines, que acompanha o encarceramento indígena em Roraima há mais de uma década.
O promotor de Justiça Cláudio Rogério Ferreira Gomes afirma que estupro, tráfico de drogas e roubo são os principais crimes, muitas vezes ligados ao consumo excessivo de álcool nas reservas indígenas no Mato Grosso do Sul.
Gomes disse estar ciente das acusações de que os povos indígenas deveriam ser tratados de forma diferenciada no sistema de justiça criminal mas disse que “normalmente” adota os mesmos procedimentos para todos.
Ele disse que a maioria dos prisioneiros indígenas compreendem as acusações atribuídas a eles e ele só utiliza um método diferenciado quando os réus não têm esse entendimento.
“Esse tratamento diferenciado é usado para comunidades mais alheias à civilização”, disse ele, referindo-se aos detentos que não falam português nem vivem perto de núcleos urbanos.
Deilo Juca Pedro, de 42 anos, disse que cumpriu quase 11 anos de prisão por causa de acusações de assassinato feitas contra ele em 2007. Ele nega a autoria do crime.
“Mataram a minha sobrinha e como não acharam o autor do crime, me prenderam”, disse o indígena Kaiowá. “Não tem vida aqui nesse lugar. É muito ruim.”
“Mas a gente tem que encontrar um jeito de sobreviver aqui. Meu sonho é sair daqui e trabalhar de novo, ter minha vida como antes… ter outra família. Sempre fui trabalhador, não sou criminoso.”