Desde a Idade da Pedra, os semelhantes se unem. Na Era Paleolítica, por exemplo, caçadores andavam com caçadores, artesãos com artesãos e por aí vai. Nos dias de hoje, as escolas repetem este padrão: estudiosos se fecham numa panela; e o mesmo vale para mauricinhos, patricinhas, hippies, maconheiros, esportistas, metaleiros e outras tribos. Unir-se a quem parece ser igual – este é um dos primeiros códigos de sobrevivência que o ser humano aprende. E o faz rapidamente.
As pessoas, portanto, procuram instintivamente aquele que lhe parece ser próximo ou semelhante. Com o tempo, essa busca deixa de ser apenas visual. Ou seja, não basta ter o mesmo estilo e estética – mas precisa pensar de forma parecida.
Até recentemente, esta busca pela panelinha perfeita era demorada, difícil e até utópica, dependendo de onde a pessoa estivesse. O fato é que, no mundo físico, era dificílimo encontrar pessoas do mesmo naipe até pouco tempo atrás.
A internet e os smartphones acabaram com a dificuldade de agrupar os semelhantes. De uma hora para outra, todos nós descobrimos como encontrar pessoas com as mesmas ideias e mesmos interesses. De apoiar essas pessoas. De ser apoiados, compreendidos, admirados. Este momento mágico, criado em algum momento da década passada, foi uma releitura moderna do provérbio que diz: “a união faz a força”. Some-se a isso uma pandemia durante a qual as pessoas evitam sair de casa e ficam cem por cento do tempo ligados nas redes sociais e o fenômeno será multiplicado por mil.
As redes sociais mudaram o jogo de uma forma que o bullying – antes restrito a uma meia-dúzia de valentões – se espalha. O bullying digital, através do qual ninguém precisa conhecer a vítima em potencial, é perfeito para os dias de hoje. A partir de um rastilho de pólvora, devasta-se reputações e joga-se na lama aqueles que discordam do grupo com maior voz. Imagine isso ocorrendo com pessoas entediadas, ansiosas e estressadas. O potencial de desentendimento e de perseguição chegam a níveis jamais imaginados pela humanidade.
Ao perceber que é ouvido, respeitado e até cultuado num ambiente digital, aquele que tem dificuldade de relacionamento no mundo real ganha voz e espalha suas ideias. Resultado: torna-se um profissional das redes sociais. O mundo virtual passa, assim, a ser mais importante que o físico para algumas pessoas. Se alguém achar que o coronavírus é uma farsa, por exemplo, encontrará rapidamente quem pense igual pelas redes e poderá, em bloco, cutucar aqueles que pensam de forma diferente.
Até o ano passado, o Brasil era o segundo maior país com casos de cyberbullying e um terço dos estudantes brasileiros já tinham enfrentado algum tipo de agressões digitais. Com o confinamento, é de se esperar que os casos de assédio moral via rede cresçam exponencialmente.
Muitas pessoas estão trabalhando em casa e, portanto, mais próximas, do ponto de vista físico, de seus filhos. Em tese, isso contribuiria para que pais prestassem maior atenção no comportamento de seus rebentos. Na prática, porém, pode ocorrer o contrário. Pais e mães podem relaxar, acreditando que os filhos estejam em total segurança, e não perceber mudanças de comportamento e de hábitos. Ou creditar eventuais alterações ao estresse provocado pelo isolamento social. É aqui, porém, que mora o perigo. É preciso, mais que nunca, prestar atenção ao comportamento das crianças.
O mesmo pode acontecer com colegas, parceiros, contratantes e fornecedores. Todos já devem ter participado de videoconferências nas quais algumas pessoas são interpeladas de forma agressiva por interlocutores que, normalmente, são dóceis. A rudeza acaba passando despercebida em nome da produtividade e do foco em trabalhar remotamente. Mas está crescendo entre nós – e o feriadão em São Paulo pode servir para acirrar ainda mais os ânimos.
Este tipo de comportamento também pode ser percebido nos famigerados grupos de WhatsApp. Nessa modalidade de rede social, vai-se do zero ao cem em questão de poucos segundos. Esse temperamento explosivo gera situações de cyberbullying explícito.
Como resolver esse tipo de problema? Há quem reaja na base do olho por olho, dente por dente. Afinal, ofensas e provocações não são engolidas com facilidade. Isso, porém, só retroalimenta o processo. Um ataque cibernético de assédio pode gerar depressão e recolhimento como resposta para uns; ou agressividade e violência para outros. Os dois casos, entretanto, precisam ser vigiados com cuidado.
Quem mora na cidade de São Paulo vai encarar um feriado estendido até segunda-feira, trancado em casa e sem grandes alternativas de lazer, exatamente quando muitos de nós estão se jogando no trabalho de corpo e alma. Uns por vocação, outros por ansiedade. Há até aqueles que estão trabalhando mais para afugentar o tédio. Qualquer que seja a motivação, há empresas que respeitarão o lockdown disfarçado e, com isso, criarão mais um fator de estresse psicológico – e mais uma porta aberta para o bullying cibernético.
Os números de mortos e contaminados no Brasil só fazem subir e colocam as autoridades sanitárias em polvorosa. Isso ocorre justamente quando o esgotamento emocional está igualmente em alta. O megaferiado, assim, cria situações de potencial explosivo no relacionamento digital. Mais do que nunca, é preciso autocontrole. Nessas horas, temos de lembrar as palavras de Harry Truman, o presidente que liderou os Estados Unidos no pós-guerra e, portanto, teve de lidar com milhões de cidadãos que voltaram do front e tiveram de ser reinseridos na sociedade. “Quando leio sobre a vida de um grande homem, sempre vejo que sua primeira grande vitória foi sobre ele mesmo”. É o que precisamos fazer agora. Para combater o desespero, a ansiedade e o cyberbullying.
Uma resposta
Excelente artigo Aluizio, parabéns. É impressionante como isto é aberto e claro nos grupos de zap e redes sociais. Bullying, falta de transparência e sinceridade talvez sejam o veneno do mundo digital. Quando valorizaremos um comentário sincero – mesmo que um pouco duro – em posts que não merecem “palminhas” ou “Uau!”? Será que a liberdade e decisão de postar conteúdos com essência e/ou má qualidade acontece porque não existe um feedback honesto de que os mesmos podem ser até vergonhosos? Quais os antídotos para estes venenos do mundo digital, ou este novo mundo de fato é o lugar para falsos e hipócritas? Pesado né? 🙂 Food for though.