Certa vez, entrei numa longa discussão com um conhecido empresário. Sua tese era a de que o ensino fundamental no Brasil deveria se restringir a aulas de matemática e de ciências, já que tínhamos déficit de mão de obra qualificada. Bobagens como história, ele dizia, deveriam ser descartadas e reservadas apenas para quem desejasse se tornar um especialista no assunto. Lembrei deste colóquio, que me pareceu ser interminável, ao procurar mais informações sobre a Gripe Espanhola – talvez a única situação histórica na qual podemos buscar exemplos que ajudem no combate à pandemia gerada pelo coronavírus.
Não fosse esta cadeira, a História, dificilmente teríamos acesso a dados que sirvam para avaliar o nosso comportamento diante do isolamento social. Na pesquisa que fiz, topei com uma tese de Mestrado defendida em 2003 pela historiadora Adriana da Costa Goulart, cujo título é “Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro”. O ensaio traz alguma informações que mostram comportamentos semelhantes entre o que estamos presenciando hoje e aquilo que foi vivido em 1918.
Como ocorre em 2020, houve um grande debate entre seguir as orientações dadas pela Ciência ou não. Em um artigo da revista Careta há uma menção ao que se chamava “a ameaça da medicina oficial, da ditadura científica”. A Diretoria Geral de Saúde Pública havia decretado o isolamento social, “tomando providências ditatoriais, ameaçando ferir os direitos dos cidadãos com uma série de medidas coercitivas, (…) preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis”. O teor do texto não é muto diferente de certos posts nas redes sociais que falam mal das medidas de distanciamento social.
Por outro lado, havia – exatamente como acontece agora – quem defendesse as orientações dadas por médicos. A origem dessa defesa era de jornalistas e deputados, que valorizavam o papel dos higienistas, até então quem detinha o conhecimento científico necessários para combater a pandemia.
A imprensa também era criticada pelo que se considerava um tom alarmista e uma certa obsessão em relatar a evolução da doença e do número crescente de vítimas. A charge abaixo ilustra bem essa posição:
A aparência das cidades, submetidas a um rígido controle de circulação, era semelhante ao dos dias atuais. O Correio da Manhã, em outubro de 1918, publicava um trecho que descrevia a paisagem das ruas do Rio de Janeiro: “Era fúnebre o aspecto da cidade ontem à noite. Todo o comércio fechado, o movimento nulo, absolutamente nulo. Um ou outro bar e botequim ainda servia a freguesia, mas de longe em longe, porque, em sua quase totalidade, essas casas, que tanta vida davam à cidade, não funcionavam”.
O tamanho do estrago, na época, também foi significativo – talvez até maior que o de hoje. A cidade do Rio tinha 910 710 habitantes em 1918. Dessas, morreram cerca de 15 000 pessoas, enquanto 600 000 adoeceram. Isso significa que a gripe espanhola infectou dois terços da população local.
Isso nos leva inevitavelmente à discussão que se arrasta atualmente: o que é melhor, o distanciamento social ou a imunização em massa?
Antes de mais nada, as medidas de distanciamento foram tomadas com um objetivo principal: evitar o colapso das UTIs pelas cidades, já que a pandemia é inevitável. Infelizmente, haverá mortes durante o processo, pois a doença é letal e não se trata de uma gripe comum, como já se provou. O que muitos ponderam, no entanto, é que a circulação de pessoas precisa ser restringida para salvar vidas.
Novamente, a história pode nos ensinar algo sobre o comportamento da onda de coronavírus.
A primeira conclusão que se chega, olhando dados referentes a 1918, é que haverá duas ou três ondas de infecção. Estamos passando pela primeira, que geralmente é mais forte. Em seguida, teremos inevitavelmente uma segunda fase. É por isso que os mais frios afirmam que a melhor solução seria a imunização em massa (“herd immunity”), apesar do alto preço a se pagar com a perda de vidas humanas.
Em 1918, ao contrário do que ocorre em 2020, não havia nenhuma possibilidade de se esperar a criação de uma vacina ou de um medicamento no curto prazo. Por isso, a única saída era esperar que a população obtivesse imunidade para que a situação fosse normalizada.
Mas qual foi o resultado das diferentes soluções adotadas nas cidades? Temos aqui alguns dados dos Estados Unidos para comparar. Pode-se dividir as cidades americanas em três grupos.
Na Filadélfia, por exemplo, demorou-se oito semanas para que as medidas de isolamento fossem adotadas. Isso criou uma espécie de fenômeno semelhante ao da imunização. O resultado foi uma taxa de 748 mortes a cada 100 000 habitantes, com pico entre a quarta e oitava semanas. Depois disso, a população ganhou imunidade a taxa de mortalidade quase chegou a zero após 24 semanas. Nesta e em outras cidades, as medidas de distanciamento foram curtas. São os casos nos quais o número de mortes foi maior.
Em seguida, há aquelas que demoraram pouco para iniciar a quarentena, mas a adotaram por período mais longo. É o caso de Nova York, onde o isolamento teve início onze dias após o primeiro caso. O resultado foi um índice de fatalidades menor: 542 vítimas a cada 100 000 pessoas e a segunda onda foi bem suave.
Por fim, temos aqueles em que as medidas foram severas, adotadas rapidamente e por um período mais longo. É o caso de St. Louis, que teve duas ondas de contaminação e lockdown. O total de mortes, no entanto, foi de 352 a cada 100 000 cidadãos. O menor índice registrado nos EUA foi o de Minneapolis: 267 fatalidades a cada 100 000 pessoas.
O que se pode concluir desses números (a fonte é o estudo “Nonpharmaceutical Interventions Implemented By Us Cities During the 1918-1919 Influenza Pandemic”): que o distanciamento social, de fato, achata a curva de contágio e reduz mortes. Essa mesma lógica pode ser aplicada ao coronavírus? É o que pensam os médicos da atualidade. O problema, no entanto, é o custo que se cria às nações com sua economias paralisadas, uma vez que há também relação direta entre crescimento da pobreza e o aumento de número de mortes. As autoridades, portanto, têm diante de si um desafio que está mais no campo moral que no sanitário: permitir um número maior de mortes em função de uma recuperação da economia? Algo difícil de fazer, bem na linha “escolha de Sofia”.
A grande diferença entre os períodos históricos está no avanço da medicina. Há notícias de que vacinas podem ser criadas a toque de caixa e que estariam disponíveis já no ano que vem. Também temos condições de cuidar melhor dos enfermos nos dias de hoje – só não podemos deixar que as UTIs entrem num processo de gargalo.
Graças aos registros históricos, podemos ver que é inútil brigar com a Ciência ou achar que a imprensa é culpada da situação catastrófica em que estamos. Ou seja, é hora de aprender as lições que a História nos mostra para que não cometamos os mesmos erros do passado. Trocar acusações só torna tudo mais complicado e o sofrimento, que é muito, ainda mais duradouro. Não vamos repetir os erros do passado.
Uma resposta
Há análises sobre os dados da época que mostram que as cidades que tomaram medidas de isolamento mais restrito tiveram maior recuperação econômica que as que adotaram as medidas tarde.
No link de nytimes abaixo mostra o caso das cidades gêmeas de Minneapolis e Saint Paul que adotaram medidas diferentes durante a pandemia.
https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/03/upshot/coronavirus-cities-social-distancing-better-employment.html