O presidente Jair Bolsonaro, ontem (5), falou sobre a mudança no horário de divulgação dos dados diários sobre o avanço da pandemia no Brasil. Antes, as informações eram reveladas entre o final da tarde e o início da noite. Agora, a coletiva de imprensa do Ministério da Saúde é realizada entre 19:00 e 22:00. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, disse Bolsonaro, que se referiu à emissora do programa como “TV funerária”.
A Globo, desde os anos 1960, criou um padrão na televisão brasileira de criar a chamada grade de programação nacional do horário nobre. Ou seja, tirando raríssimas exceções, a emissora sempre terá um noticiário – o JN -ensanduichado por duas novelas. Por conta dessa grade imutável, debates políticos e jogos de futebol, por exemplo, tiveram que se adaptar à programação da Globo e ser marcados após às 22:00.
Assim, talvez seja a primeira vez que um órgão público desafie frontalmente essa fórmula e conteste publicamente a importância do Jornal Nacional. No passado, por exemplo, houve inclusive casos de ministros que cronometravam a divulgação de informações de acordo com o horário do JN, com a intenção de entrar ao vivo no programa noticioso da Globo.
À parte a má vontade do presidente com o grupo controlado pela família Marinho, essa atitude ajuda ou atrapalha o combate ao coronavírus?
Estamos numa era em que informações são compartilhadas em redes sociais quase que instantaneamente. Hoje, boa parte do nossa fonte primária de notícias vem de notas compartilhadas nos grupos de WhatsApp ou sites que acessamos de nossos smartphones. Ou seja, o Jornal Nacional está longe de ser a única forma de informação disponível aos brasileiros.
Mas muitas pessoas ainda se informam através da TV aberta. O JN tem dado picos de audiência de 41 pontos, segundo o Kantar Ibope, numa média que tem ficado durante a pandemia em torno de 38 pontos. Isso significa que, somente na região metropolitana de São Paulo, há 7 milhões de pessoas ligadas neste noticiário.
É justo privar essas pessoas, mesmo que momentaneamente, de dados sobre o coronavírus, por piores que eles sejam? Não me parece ser uma atitude correta. Os dados são ruins e essa é nossa realidade. Tornar sua divulgação mais difícil não vai ajudar a reduzir o contágio ou o número de vítimas. No fundo, é apenas mais uma bravata contra um grupo de comunicação. Ontem foi com a Globo, hoje pode ser contra a Folha de S. Paulo, amanhã com o Estadão e assim por diante.
Para Bolsonaro, a imprensa que retrata negativamente seu governo o faz porque não recebe verbas oficiais. Isso, em alguns casos, pode até ser verdade – mas não é uma regra para todos os veículos jornalísticos. A Folha, por exemplo, não tolera o presidente desde os tempos em que ele era deputado e partiu para críticas explícitas ainda durante a campanha. Neste caso, a incompatibilidade entre a agenda do presidente em diversos aspectos bate de frente com a linha editorial do jornal. Dinheiro público faria alguma diferença neste caso? Muito provavelmente não.
Distribuição de dinheiro ou falta de, aliás, parece ser a explicação do presidente para muitas coisas. Também ontem, Bolsonaro fez comentários sobre a decisão da Organização Mundial da Saúde de retomar os estudos médicos com a hidroxicloroquina. Essas pesquisas tinham sido interrompidas após a publicação de um artigo na revista científica The Lancet, que mostrava um aumento de mortalidade em pacientes com coronavírus tratados com a droga, num universo de 96 000 pessoas.
Segundo Bolsonaro, a OMS tomou essa decisão depois que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que iria cortar a verba que seu país destinada à entidade. “Só tirar a grana que eles começam a pensar diferente”, disse o presidente.
Considero a OMS um antro de burocratas despreparados para enfrentar um problema da magnitude como a atual pandemia. A organização já deu orientações que se mostraram erradas, como minimizar a importância do uso de máscaras, ou relativizou a importância do coronavírus durante sua eclosão na China (classificado em janeiro como “risco moderado” de epidemia mundial).
Mas esta mudança nada tem a ver com a destinação de verbas.
Como se pode ver nesta nota publicada por MONEY REPORT no dia 4 de junho (https://www.moneyreport.com.br/politica/autores-pedem-retratacao-em-estudo-que-alertou-para-riscos-da-cloroquina/), a Lancet publicou uma retratação dos autores do estudo que divulgado originalmente em 22 de maio (a base da decisão da OMS em banir os estudos da hidroxicloroquina). Esses cientistas disseram não poder garantir a autenticidade do artigo, já que um dos autores do estudo não quer liberar todos os dados referentes aos 96 000 pacientes analisados. Ou seja, a pesquisa pode estar errada. Com base nesta retratação, a OMS decidiu retomar a análise do uso da droga.
Como se pode ver, nem tudo – especialmente nos terrenos da imprensa e da medicina – tem a ver com o dinheiro.