Autoridades estaduais e municipais decretaram que o comércio de rua volta às atividades no dia de hoje e os shopping centers a partir de amanhã na cidade de São Paulo. Isso ocorrerá após o estado ter registrado um recorde de mortes registradas por coronavírus – 334 vítimas fatais.
Depois de ficar semanas e semanas martelando que respeitaria a ciência e que manteria as regras de isolamento social enquanto as condições não permitissem um relaxamento, tanto o governador João Doria como o prefeito Bruno Covas decidiram ceder à pressão dos comerciantes.
Qual a lógica por trás disso?
A explicação está no aumento de leitos de UTIs disponíveis na região, que derrubou o índice de ocupação dos casos de emergência para 82,4 % na capital. Ainda é um índice alto, mas se espera a instalação de novos respiradores para os próximos dias, o que deve reduzir ainda mais esse índice. O número de vítimas fatais na capital também diminuiu. O pico das fatalidades foi atingido em 29 de maio, com 109 casos. Ontem (9), houve 90 perdas, o que representa uma queda de 17%.
Lembremos: o isolamento não foi criado necessariamente para salvar vidas, embora tenha esse efeito. O principal propósito da quarentena é evitar o colapso do sistema de saúde, especialmente a superlotação das unidades de terapia intensiva. Portanto, utilizando totalmente o lado racional, ao termos uma redução na ocupação de leitos (e uma queda no registro de mortes da capital) haveria a possibilidade de retomarmos as atividades comerciais na principal cidade brasileira – mesmo que isso significasse um espalhamento maior da contaminação e uma eventual elevação no número de mortos. Trata-se de um argumento racional e que atende aos empreendedores do comércio que precisam retomar suas atividades para sair do sufoco financeiro, embora tenha gerado críticas.
Onde está o problema?
Está no discurso adotado pelo governador até pouco tempo atrás, fortemente ancorado na proteção de vidas e não na preservação do sistema de saúde. Doria, por exemplo, afirmou a quem clamava pela reabertura da economia paulista o seguinte: “Será que vamos precisar ver pessoas mortas nas ruas e calçadas? Reflita você que não acredita no isolamento social”. Outra frase dita pelo governador: “O Brasil não pode parar para lamentar a irresponsabilidade de alguns que preferem desprezar vidas”.
Para retrucar os que protestavam contra a quarentena, ele chegou a perder a paciência. “Aqueles que nos pressionam, a eles eu pergunto: vocês estão preparados para assinar os atestados de óbito de brasileiros? Para carregar os caixões com as vítimas do coronavírus? Vocês que defendem a abertura, aglomeração, que minimizam a crise gravíssima que nós estamos, vão enterrar as vítimas?”, arguiu Doria.
Como se pode ver, João Doria usou a preservação de vidas humanas para manter vazias as ruas do estado, sem levar em consideração as condições específicas de cada município. Mas, para reabrir o comércio, o argumento lógico e racional passou a ser o do alívio na ocupação das vagas de UTIs e redução pontual de mortes de acordo com as característicass regionais. Trata-se de uma contradição que deverá ser explorada pelos adversários políticos do governador, especialmente se houver (melhor bater na madeira) uma nova onda de vítimas.
Há inclusive comerciantes questionando a retomada da atividade de seus estabelecimentos, uma vez que as portas só poderão ser abertas durante quatro horas seguidas e em horários alternativos. Isso também valerá para os shoppings, que só poderão abrir das 6 da manhã às 10 horas ou das 16:00 às 20:00, mesmo assim com até 20 % de sua capacidade de lotação. Esses lojistas ponderam que seus funcionários irão gastar muito tempo no transporte público para trabalhar apenas 4 horas. O próprio sistema de ônibus e de metrô vai sofrer um acréscimo em seu fluxo, o que pode elevar os riscos de contaminação.
Há também a preocupação específica em relação a um centro nervoso de compras da capital, a rua 25 de março, conhecida por suas aglomerações e por atrair consumidores do interior de São Paulo, exatamente onde o contágio está crescendo, puxando para cima o registro de falecidos.
Como se era de esperar, essa decisão acabou minando a popularidade do governador e do prefeito da capital, ambos do PSDB. Pesquisa do Ibope mostra que 36 % dos entrevistados acreditam que as medidas adotadas por Doria são inadequadas. Na última pesquisa, esse índice era de 21%. Com Covas, a tendência foi semelhante, com crescimento de 20% para 35% em um mês. Nem o presidente Jair Bolsonaro escapou. Cerca de 66% dos entrevistados afirmaram que consideram inadequadas as medidas defendidas pelo presidente (contra 57% anteriormente).
Eleitores procuram coerência e torcem o nariz quando percebem que os políticos mudam rapidamente de ideia sem oferecer argumentos convincentes. A aposta de Doria atende aos apelos dos empresários, mas é um movimento ousado, pois há o risco de se provocar uma nova fase de contaminação (vamos, mais uma vez, torcer para que isso não ocorra).
Se tudo der certo, Doria entrará para a história como um gênio político, pois usou a preservação das vidas para antagonizar com Bolsonaro e depois mudou de ideia na hora certa, reduzindo os danos à economia. Mas se, ao contrário, a economia não for reanimada e houver novos surtos, o eleitor ficará irado. Mais uma vez, durante a pandemia, enxerga-se a adoção de medidas que não ficam nem lá nem cá. Não tivemos o lockdown, passamos por um rodízio de veículos insano na capital (com o objetivo de elevar o índice de isolamento) e agora adotamos uma abertura do comércio bastante tímida, como se governador e prefeito estivessem sempre tomando decisões em cima do muro – este, aliás, um ícone máximo do estilo PSDB de fazer política.