Pesquisar
PATROCINADORES
PATROCINADORES

Desinformação alimenta as torcidas pró e contra cloroquina

É provável que o leitor jamais tenha lido ou ouvido falar da Surgisphere Corp, empresa americana de análise de saúde criada em 2008. A atividade da companhia deveria ser fundamental na pandemia, pois atua como uma espécie de hub de informações, principalmente estatísticas, recolhendo, depurando e repassando para pesquisadores dados para as pesquisas mundiais sobre a resposta de pacientes aos medicamentos testados contra a covid-19. Sem o trabalho de organizações do gênero – sejam privadas ou estatais – , o avanço científico seria mais lento e limitado. É aí que está o perigo.

Baseados em dados da Surgisphere, em maio um grupo de pesquisadores apontou os riscos do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, associadas com outros remédios ou não, nos tratamentos da covid-19. A pesquisa apontava que, entre os pesquisados, o índice de óbitos variou de 16,4% e 23,8%, contra 9,3% do grupo de controle. O trabalho foi publicado na revista científica The Lancet e fez com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendasse a suspensão por duas semanas do emprego da substância. Na hora de reexaminar os dados, algo que pesquisadores fazem exaustivamente, foram constatadas inconsistências metodológicas por parte da Surgisphere, que não repassou o material bruto para uma revalidação. Essa atitude forçou a retirada do estudo da The Lancet e do New England Journal of Medicine. Assim, a substância voltou a ser empregada nas pesquisas com pacientes.

O que era para ser um problema – sério – de âmbito acadêmico, virou briga de torcida. Mesmo sem saber do que tratou a pesquisa, a causa da retirada dos estudos ou o que está em jogo, os “cloroquiners” – como são jocosamente chamados no Brasil os defensores do uso das substâncias – trataram de refutar a OMS, deixando de lado que a instituição, desde o início, só havia pedido uma suspensão temporária. Essa briga de viés ideológico deixa de lado, por ignorância ou má-fé, que mais de 120 substâncias estão sendo analisadas, em uma corrida que exige intensa colaboração. A maioria da comunidade científica aposta em revalidação, que é o emprego de uma substância já empregada contra outros males. É o que ocorre com dezenas de compostos, como o antiviral remdesivir e a própria cloroquina, usados para aliviar sintomas de malária, e o antiviral tenofovir e tipos de interferon, para o HIV.

Mais do que torcer por um tipo de solução ou outra, o que o cidadão comum precisaria é deixar de lado a gritaria em rede social e crer que só sociedades que apoiem pesquisas têm condições de cuidar de sua população diante de graves ameaças sanitárias. Dos cerca de 150 países que receberam permissão da farmacêutica Gilead para fabricar e testar o remdesivir genérico durante a pandemia, apenas Guiana e Suriname foram incluídos na América do Sul. A paupérrima Bangladesh já começou a produção. Nos países desenvolvidos, a adoção de critérios mais restritos de pesquisa está em acalorada discussão. Para tanto, é preciso transparência e divulgação. Ao reexaminar a pesquisa da cloroquina, um repórter percebeu que a Surgisphere havia informado que dos 600 pacientes de covid-19 internados em cinco hospitais australianos, 73 haviam morrido até 21 de abril. Só que este número só foi atingido dias depois, invalidando tudo. Ao site do jornal britânico The Guardian, o Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas defendeu que os editores devem passar a “incentivar os autores a disponibilizar publicamente esses documentos no momento ou após a publicação”.

Com questões tão complexas em jogo, por aqui se perde tempo discutindo no governo recontagem de corpos – algo que deve ocorrer sob os cuidados pesquisadores – e os supostos riscos do uso da “vacina chinesa” que começará a ser testada no Brasil com ajuda do Instituto Butantan. Parece que, desde o século 19, as instituições políticas não aprenderam nada sobre o que ocorreu durante os surtos de Febre Amarela no Rio de Janeiro da República Velha, a Revolta da Vacina, a Gripe Espanhola, o surto de meningite nos anos 70 e os mais recentes de dengue e chikungunya. É um desperdício, pois o Brasil já foi um modelo mundial no combate à AIDS e em organização de eficientes campanhas de vacinação infantil.

Compartilhe

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pesquisar

©2017-2020 Money Report. Todos os direitos reservados. Money Report preza a qualidade da informação e atesta a apuração de todo o conteúdo produzido por sua equipe.