Marx acreditava que apenas a classe socioeconômica do indivíduo o permitiria conhecer a verdade
Eis o cenário.
Você e eu estamos em um bar quando repentinamente iniciamos um debate intenso com alguns caras da mesa ao lado.
O tópico é a situação cruel do mundo. E a discussão é sobre como melhor resolver esses problemas.
De início, começamos argumentando que o livre mercado e a ordem espontânea são a melhor opção. Eles, por outro lado, dizem que o socialismo é o único caminho a seguir.
À medida que nossas garrafas de cerveja vão secando, começamos a perceber que iremos demorar um pouco antes de pedirmos outra rodada. Algumas pessoas que estão sentadas às mesas ao lado começam a direcionar para nós olhares complacentes quando um de nossos interlocutores, espumando pela boca, grita que eu estou agindo de má fé e afirma que você possui motivos nefastos para tal defesa.
Por não gostar de levar desaforo para casa, rapidamente eu me levanto e reajo ruidosamente em nossa defesa, batendo na mesa com a mão direita exigindo que ele não tornasse as coisas pessoais. Você vem ao meu auxílio e lhes diz: “Não, não! Não é assim, amigo; estamos apenas mostrando os fatos!”
Seu companheiro de mesa zomba ao ouvir isso, respondendo com um grunhido afetando superioridade: “Isso é um absurdo! Não existe essa coisa de busca abnegada e altruísta pela verdade.”
“Exatamente”, afirma o primeiro, voltando sua atenção para mim. “Você só está dizendo isso porque você é de classe média.”
“Você só pode pensar de acordo com o que você é!”
A maioria das pessoas concordaria que esta é uma maneira tola de encerrar um debate. Em primeiro lugar, “acusar” uma pessoa de pertencer a uma determinada classe não demonstra por que a opinião dela está errada. Em segundo lugar, um indivíduo não tem como alterar suas origens — e muito menos um argumento pode fazer isso. Por isso, se o pedigree de determinadas pessoas de fato as leva a ter preconceitos inexpugnáveis, é melhor não perder seu tempo tentando debater com elas.
Ademais, se não existe isso de “busca abnegada pela verdade”, então por que não simplesmente dizer: “Bem, eu tenho meus vieses e propensões, e você tem os seus. Não há como chegarmos a um ponto em comum. Logo, vamos pedir outra bebida e deixar do jeito que está.”
Para ser bem honesto, eu queria ter essa força de vontade. Pois, qual fundamento nossos adversários utilizariam para saberem se as posições que eles defendem estavam corretas, considerando o pressuposto de que a verdade dos fatos é algo muito distante para a razão humana?
Seguindo um rumo mais filosófico, é autocontraditório tentar convencer alguém de que não existe uma lógica objetiva. Como raciocinar que não há razão? Os filósofos chamam isso de “contradição performativa” e a reconhecem como uma falácia lógica.
Outros exemplos de contradições performativas incluem “A linguagem não faz sentido”, que em si usa de modo inconsciente a própria linguagem para transmitir um significado, e “Não há verdade absoluta”, que nada mais é do que a afirmação de um absoluto.
Karl Marx apontou que o filósofo e ideólogo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, famoso por declarar que “propriedade é roubo”, cometeu uma “contradição performativa” porque “roubo” é a violação forçada da propriedade, o que pressupõe a existência de propriedade para ser roubada!
Uma das principais críticas de Mises a Marx foi a de que Marx nunca realmente refutou seus opositores contemporâneos ou as ideias dos economistas clássicos. Marx, para fugir do debate, simplesmente os rotulou como “burgueses”, preconceituosos e apologistas da classe exploradora – e outros tantos nomes desagradáveis e desprezíveis.
Se você já se envolveu em um debate online, provavelmente notou que desqualificar os argumentos de alguém com base, por exemplo, em sua identidade, é bastante corriqueiro. Ainda hoje alguém comentou: “Você pode ter ido à universidade e você pode ter escrito alguns livros, mas você realmente não viveu a vida capitalista, na qual você é forçado a assinar um contrato para trabalhar mais de 45 horas por semana, pois se você não o fizer você não comerá.”
As pessoas fazem isso naturalmente quando confrontadas com informações que não querem aceitar. Sua primeira reação é encontrar uma maneira de rejeitar a fonte em vez de refutar as alegações. Lembro-me que, quando eu era criança, tinha um amigo comunista que descartava todos os pensadores de que ele não gostava. Ele dizia que Karl Popper era “reacionário” e que Nietzsche era um “completo direitista”. Mas isso não é exclusividade da esquerda. Conservadores são conhecidos por frequentemente descartar seus oponentes como “esquerdosos”.
Hitler rejeitou todas as conclusões de Einstein, Freud e Adler dizendo que eram apenas “ciência judaica”. Como resumiu o psicólogo social Thomas Gilovich:
Para as conclusões desejadas, nos perguntamos: “Posso acreditar nisso?”. Já para as conclusões pouco palatáveis perguntamos: “Tenho de acreditar nisso?”
Marx sistematizou os ataques pessoais
A maioria das pessoas reconhece que, embora possamos recorrer a ataques pessoais no calor do momento, um ad hominem nunca é realmente válido em um debate. O que torna Marx um filósofo distinto é que ele de fato tornou sistemática essa tática em sua filosofia.
De acordo com o marxismo, a posição social de um indivíduo determina suas crenças. Por isso, tal indivíduo não tem a capacidade de enxergar o mundo de outra forma, exceto segundo o interesse de sua própria classe, a qual irá determinar as ideias que ele defende.
Assim, para Marx e os marxistas, não tem como existir algo como a busca abnegada e desinteressada pela verdade. Em uma sociedade capitalista, os trabalhadores, de maneira irreconciliável, estão em uma luta contra seus empregadores. Sendo assim, cada um dos lados é obrigado a adotar ideologias contaminadas que, embora falsas, têm o propósito de agir por meio deles para servir a seus interesses obscuros.
A verdade reside apenas na ciência proletária, e assim Marx não precisou de refutar seus oponentes ideológicos — teve apenas de rotulá-los como “burgueses” (algo um tanto irônico, dado que ele próprio era filho de um rico advogado, e sua mulher era de família nobre). Aqueles primeiros economistas que defendiam o liberalismo tinham vieses intencionais ou inconscientes que os levaram a defender o livre mercado. Eles eram “apologistas bajuladores dos interesses injustos da classe dos exploradores burgueses, prontos para vender o povo para grandes empresas e financiar capital”. Para Marx, isso era tudo o que realmente precisava ser dito sobre eles.
Mises e a verdadeira economia
Mises, é claro, nunca negou que as pessoas não tivessem propensões e vieses. Ele sempre reconheceu que as pessoas poderiam estar predispostas a convicções políticas que as beneficiassem pessoalmente. Afinal, ele era um grande crítico dos subsídios estatais e das tarifas protecionistas. Ele tinha todas as razões para acreditar que, quando os industriais da Áustria defendiam impostos mais altos sobre as importações, era porque esperavam evitar a concorrência estrangeira.
O que ele rejeitou é a ideia de que é impossível alcançar crenças verdadeiras por meio da razão. É para isso que o debate existe: para expor os erros de uma lógica imprecisa.
Mises chamou a razão de “o único instrumento da ciência e da filosofia”. Em outras palavras: a nossa capacidade de raciocínio, por mais que seja aplicada equivocadamente às vezes, ainda é nossa única maneira de diferenciar uma ideia verdadeira de uma falsa.
Segundo ele:
Tudo o que interessa é se uma doutrina é consistente ou não. Isso deve ser estabelecido por meio do raciocínio discursivo. A solidez e a consistência de uma determinada teoria não são em nada diminuídas caso as forças psicológicas que motivaram seu autor sejam conhecidas.[…]
Se as falhas e os erros de uma determinada doutrina forem desmascarados, historiadores e biógrafos podem tentar explicá-los imputando-as aos eventuais vieses do autor. Mas a referência a esses vieses não substitui a necessidade de refutar suas doutrinas por meio de argumentos sensatos e sustentáveis.
Foi importante para Mises enfatizar que a economia, sendo uma ciência, é livre de juízo de valor (wertfrei). Seu objetivo é descrever como o mundo é e não como deveria ser. Ela é descritiva e não prescritiva. Ela deve nos oferecer as ferramentas para descobrir qual será o resultado das políticas, independentemente do que nós — ou nossos oponentes — possamos desejar, esperar, imaginar, preferir ou alegar.
A única maneira de descobrir se uma afirmação econômica (como, por exemplo, a afirmação de que os controles de preços levam a excessos e desabastecimentos) é verdadeira ou falsa é por meio do raciocínio discursivo. Apelos à raça, religião, “caráter nacionalista” ou “interesses de classe” do autor são completamente inúteis.
Mises também alerta para as graves consequências de se acreditar que ideias são determinadas por interesses próprios. O que começa com a inocente acusação de preconceito burguês ou de tendência racial só pode se degenerar em perseguição aos dissidentes e seu eventual “extermínio”.
Sucintamente: ou recorremos à razão ou à violência.
Ideias falsas nunca podem sobrepujar a realidade
Bertrand Russell (talvez o principal filósofo do século XX, até sua morte em 1970) costumava dizer “Eu acho que, se algo é verdadeiro, você deve acreditar nele; mas se não é verdadeiro, não deve acreditar”.
Sempre tive essa tendência, embora um dos meus professores de filosofia tenha declarado que, às vezes, existem bons argumentos contra “acreditar na verdade”.
Por exemplo, se você é atleta olímpico, pode ser benéfico para o seu desempenho ter uma autoconfiança demasiada sobre sua própria habilidade. No entanto, podemos concordar que, como modo de vida geral, é preferível a verdade sobre a ficção. É por isso que colocamos os loucos no manicômio e discutimos com nossos amigos e parentes que afirmam que Roosevelt acabou com a Grande Depressão, por exemplo.
Entendemos que, ainda que a “verdade suprema” esteja além da apreensão de meros mortais, a veracidade de algo é um padrão ao qual devemos ao menos aspirar.
Mises afirma que poderíamos ignorar a controvérsia de que a estrutura lógica da mente difere entre os membros de diferentes classes. Poderíamos aceitar — pelo bem da discussão — a afirmação dúbia de que a principal preocupação dos intelectuais é promover seus interesses de classe (mesmo que possam ir contra seus interesses pessoais). Poderíamos até mesmo considerar que não existe uma busca pela verdade. E, ainda assim, mesmo concedendo a Marx todas as sua premissas, a doutrina da ideologia ainda estava totalmente refutada pela lógica.
Sua razão para isso é que não há justificativa para acreditar que ideias falsas seriam mais efetivas para promover o interesse de classe de alguém do que as ideias corretas — uma observação bastante sensata. Voltando ao exemplo de se colocar malucos no manicômio, fazemos isso porque falsas crenças fazem com que as pessoas batam de frente com a realidade. Fundamentalmente, a verdade funciona.
Se você quer construir uma casa, é melhor considerar as leis da gravidade. Se você quer que suas plantas cresçam, é melhor regá-las e colocá-las ao lado da janela, onde elas tomarão sol. As pessoas passaram a estudar mecânica por razoes práticas, escreveu Mises. Elas queriam resolver problemas de engenharia. Até onde eventuais idéias ruins as levariam? Nem um único motor a vapor poderia ter sido inventado sob premissas falsas. “Não importa como alguém olhe para isso”, escreve Mises, “é impossível uma teoria falsa servir a um indivíduo, ou a uma classe ou a toda a humanidade melhor do que uma teoria verdadeira”.
Marx nunca tentou explicar por que uma distorção ideológica seria mais efetiva em impulsionar determinados interesses de classe do que a própria verdade.
Mises vai além e pergunta por que Marx decidiu professar essa doutrina – infinitamente cheia de contradições. E então ele passa a questionar os motivos de Marx. Isso pode nos parecer um tanto irônico, dado o contexto. Mas tenha em mente que Mises já afirmara que, tão logo você já expôs as falácias de uma pessoa, ela se torna uma presa fácil. Criticá-la é justo. Portanto, não se esqueçam: da próxima vez que você se sentir tentado a chamar alguém de “esquerdista idiota” no Facebook ou de “direitista maluco” no Twitter, certifique-se de antes refutar seu argumento.
O real objetivo de Marx – e o início de suas contradições
Marx disseminou essa filosofia porque sua obsessão era a adoção do socialismo.
De acordo com Mises, Marx estava “plenamente ciente” de que era impossível refutar as críticas devastadoras feitas ao socialismo feitas pelos economistas da época. Ademais, a teoria do valor-trabalho, sobre a qual ele havia baseado toda a sua filosofia, adaptando-a de J.S. Mill, David Ricardo e Adam Smith, havia sido derrubada pelos economistas Carl Menger e William Stanley Jevons apenas quatro anos após Marx ter publicado o primeiro volume de sua obra O Capital, em 1867. Um tanto constrangedor.
Marx não havia entendido a nova e mais correta teoria marginal do valor, que explicava que nós valoramos cada unidade adicional de um bem que recebemos menos do que a unidade anterior. Havendo apenas um copo de água, iremos avaliá-lo como algo precioso e certamente iremos bebê-lo. Mas, caso tenhamos água em abundância, logo irmos utilizá-la para tomar banho e até mesmo para molhar a grama. Uma vez que atribuímos a cada unidade adicional de água uma função menos urgente do que a última, passamos a valorizar menos cada unidade adicional.
Smith e Ricardo não viveram o suficiente para se divertirem desmentindo o pensamento socialista primitivo que surgiu de maneira mais avassaladora apenas nas décadas de 1830 e 1840. Mises observou que Marx, embora não os tenha atacado, ventilou sua “indignação total” sobre aqueles que seguiram os passos destes dois e passaram a defender a economia de mercado. Marx desqualificou estes seguidores e os ridicularizou chamando-os de “economistas baratos” e “tietes da burguesia” – ataques estes que, hoje, já viraram norma contra qualquer um com inclinações pró-livre mercado.
Mises também observa outra contradição nessa estratégia de Marx: ao mesmo tempo em que ele ridiculariza os economistas clássicos afirmando que eles são guiados por sua formação burguesa e por seu viés pró-mercado, ele utiliza exatamente o mesmo arcabouços desenvolvido por estes economistas para chegar a conclusões anti-mercado.
O ponto é que, caso Marx houvesse se limitado a usar de calúnia e difamação para desacreditar apenas economistas, ele ainda poderia ter conseguido um passe livre. No entanto, ele elevou esse comportamento a uma espécie de lei geral. Assim, os marxistas passaram a interpretar todos os sistemas filosóficos à luz da doutrina ideológica – caluniando Mendel, Hertz, Planck, Heisenberg e Einstein por seus “interesses de classe”.
A contradição suprema
Mas eis agora a maior das ironias.
Em nenhum momento os marxistas aplicaram sua tese às suas próprias doutrinas. Os princípios do marxismo, é claro, não tinham viés. Eram puros. Não eram ideologias. Eram apenas “uma antecipação de como seria o conhecimento da futura sociedade sem classes, na qual, livre dos grilhões dos conflitos sociais decorrentes da sociedade capitalista, estará em posição de conceber o conhecimento puro, imaculado por manchas ideológicas.”
Marx ataca os argumentos em prol do capitalismo como sendo ideológicos. No entanto, pergunta Mises, por qual razão os capitalistas sequer precisariam justificar o capitalismo se, de acordo com a própria teoria marxista, cada classe está “impiedosamente em busca de seus próprios e egoísticos interesses de classe”?
É claro que, se os capitalistas por acaso sentissem vergonha de seu papel de “burgueses, agiotas, ladrões e exploradores“, então de fato eles precisariam de uma boa ideologia para fazê-los se sentir bem sobre o que estavam fazendo. No entanto, qual é a necessidade de satisfazer uma consciência que é parcial ou totalmente livre de culpa, segundo o próprio Marx?
De acordo com Marx, a burguesia sequer é capaz de entender os trabalhadores, pois eles pensam de maneira distinta. Eles vivem dentro de um sistema que utiliza outra lógica.
Finalmente, segundo o próprio sistema criado por Marx, o capitalismo é um estágio necessário na evolução da humanidade. Dado que nenhuma formação social pode desaparecer antes de todas as forças produtivas terem amadurecido o suficiente para exigir tal mudança, o capitalismo é imprescindível para fazer a ponte entre o sistema feudal e o objetivo final, que é o comunismo internacional. Os capitalistas, predeterminados em suas atitudes por causa de seu lugar na ordem social, são passivamente levados a cumprir as leis da história. Logo, eles não podem estar fazendo nada de errado!
No máximo, eles próprios estão desempenhado seu papel necessário na construção de uma ponte para a felicidade de uma sociedade sem classe. Eles são as ferramentas da história, trabalhando de acordo com um plano predeterminado para a evolução da humanidade em conformidade com as leis eternas, independentemente de sua própria vontade ou de qualquer vontade humana.
Assim, eles não poderiam evitar nada mesmo se quisessem! E certamente não precisariam de uma ideologia ou de uma falsa consciência para lhes dizer que estão corretos em agir como agem. O próprio Marx está dizendo isso para eles.
Mises termina tudo com esta:
Se Marx tivesse sido minimamente coerente, teria dito aos trabalhadores: “Não culpem os capitalistas. Ao “explorarem” vocês, eles estão fazendo o que é melhor para vocês próprios; eles estão pavimentando o caminho para o socialismo.
Para mais sobre o assunto, ver o livro Teoria e História (1957), capítulo 7, seção 4; e capítulo 2, seções 1 e 4.
(Antony Sammeroff)
Publicado originalmente em https://www.mises.org.br/article/3271/a-ironia-da-consciencia-de-classe-marxista–no-fim-a-tese-de-marx-e-comicamente-contraditoria