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Não bata no mensageiro

Escrever, muitas vezes, é uma livre associação de ideias, especialmente para quem faz isso várias vezes ao dia. Esta coluna é um exemplo vivo disso. Nesta semana, recebi uma notícia amarga vinda de um amigo. Fiquei chateado com a mensagem, mas me abstive de qualquer sentimento ruim em relação ao portador das más novas. Esse é um problema que geralmente enfrentamos quando ouvimos algo que nos desagrada. Nossa primeira reação é querer torcer o pescoço do mensageiro.

Este episódio pessoal me fez lembrar uma passagem do livro “Many Years From Now”, escrito por Barry Miles e considerado a biografia autorizada de Paul McCartney (foto). A narrativa de Miles é muito fluida e usa um recurso bastante interessante. Volta e meia, a versão de Paul é confrontada com o depoimento de outra pessoa que testemunhou o mesmo fato. O resultado é interessantíssimo, pois estes personagens notaram detalhes despercebidos pelo ex-beatle ou têm uma lembrança totalmente diferente da do biografado.

O fato que veio à memória ocorreu no início de 1970, quando os Beatles já tinham se separado de fato, mas ainda não tinham anunciado o rompimento ao público. Havia um disco ainda a ser lançado (“Let it Be”) e, assim, os quatro integrantes da banda decidiram manter a separação em segredo para não prejudicar suas vendas. Paralelamente, Paul gravou um álbum solo e marcou a data de lançamento. Só que seus colegas (eles eram donos da gravadora, a Apple) decidiram que o disco “McCartney” seria adiado. Sabendo que Paul não gostaria nada da notícia, mandaram Ringo Starr, o beatle mais boa gente, para dar as más notícias.

Na página 690, está o depoimento do autor de “Yesterday” ao jornal Evening Standard: “Ringo veio me trazer uma carta dos outros e eu o chamei de tudo o quanto era nome. Não quero brigar com Ringo. Gosto dele, o acho fantástico. Só que estamos todos falando de paz e amor, mas na verdade não nos sentimos nem um pouco pacíficos. A culpa não é de ninguém. Nós é que fomos bobos de entrar nessa situação”. Paul McCartney pediu desculpas a Ringo e os dois são amigos até hoje. Mas sempre carregou consigo o remorso de ter ralhado com alguém que vinha apenas trazer notícias desagradáveis.

No início do texto, falei em livre associação de ideias. E a segunda parte dele vem justamente por conta disso. Enquanto pensava no episódio entre Paul e Ringo (não consigo chamar os Beatles pelo sobrenome – eles me acompanharam a vida inteira e, por isso, tenho a sensação de que todos os integrantes da banda são meus amigos de longa data), tive um insight sobre a dinâmica dessa banda, algo que tem paralelo no mundo dos negócios.

John Lennon fundou os Beatles com o ímpeto de empreendedor. Com o tempo, no entanto, foi dando mostras de cansaço e deu seu lugar de chefe ao parceiro de composições, conhecido por um estilo mais conservador e compositor de baladas açucaradas.

Apesar deste perfil, Paul criou alguns dos momentos mais vanguardistas dos Beatles. Duvida? A ideia conceitual do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e o arranjo dadaísta de orquestra na canção “A Day in the Life”? Dele. A música mais barulhenta da banda – Helter Skelter? Sua composição. O medley de canções inacabadas no lado B do disco Abbey Road, a marca registrada do álbum? Também ideia dele.

Na prática, Paul virou o CEO dos Beatles. O cara chato que insiste nos ensaios e estica as gravações para conseguir a faixa perfeita. Que cobra e distribui broncas. Mas que dá resultados.

A ascensão de Paul e o retraimento de John descortina como muitas pessoas reagem à competição e aos tempos difíceis.

Uns, como o vocalista de “Black Bird”, florescem na adversidade, em um delírio criativo sem fim. Já outros têm a reação daquele que escreveu “I’m Only Sleeping” (baseada em suas sonecas de tarde na mansão em Weybridge, Surrey) – caem na apatia e diminuem drasticamente sua produtividade.

Na pandemia, temos inúmeras pessoas replicando o comportamento de John Lennon ou de Paul McCartney. E você, em qual perfil você se encaixa?

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