A chegada do lobo-guará está distraindo o público do verdadeiro problema: o tamanho do estado
Enxadristas utilizam costumeiramente a manobra de diversionismo, cujo propósito é “distrair” o adversário e induzi-lo a desguarnecer uma casa vital para o desenrolar do jogo. Apresenta-se como ameaça imediata, mas muitas vezes revela-se inócua.
Na política e na comunicação institucional, é equivalente ao ‘factoide’.
Não é um fato determinante em si, mas parece. Muitas vezes os factoides são lançados por políticos, tal qual um balão de ensaio, com o mesmo objetivo da manobra de diversionismo no xadrez.
Outras vezes são autogestados por uma percepção pública equivocada.
Este último é o caso da vindoura cédula de R$ 200, que estampará a imagem do lobo-guará. Tão logo foi anunciada, a medida foi tachada pelos críticos do governo como prenúncio de futura inflação. Isso é falso.
Na realidade, confundiu-se causa e consequência.
A nova cédula é apenas consequência do que já ocorreu
A inflação de preços chegou antes do lobo-guará.
O índice de preços ao produtor amplo (IPA) — que mede essencialmente a variação dos preços dos produtos agropecuários e industriais nas transações interempresariais, ou seja, nos estágios de comercialização anteriores ao consumo final— subiu 3,14% apenas no mês de julho. E isso após ter subido 2,22% em junho.
Eis um gráfico da evolução dos preços mensais:
Gráfico 1: IPA mensal
Perceba que o atual valor mensal é o maior desde 2003.
No acumulado de 12 meses, a alta é de impressionantes 14,30%, como mostra o gráfico a seguir, que está no formato de média móvel de 12 meses (o valor na coluna da esquerda se refere a valores mensais; para saber o valor acumulado a cada 12 meses, basta elevar o valor da coluna da esquerda ao expoente 12. Assim, o atual valor de 1,12 significa uma inflação de preços de 14,3% em 12 meses (1,0112ˆ12).
Gráfico 2: evolução mensal do IPA (média móvel acumulada em 12 meses)
O IPA é um dos componentes do IGP-M, que é o índice que serve usualmente como indexador de reajuste de aluguéis, dos planos de saúde, da mensalidade de escolas, de energia elétrica e de telefonia.
O IGP-M, por sua vez, apura preços de cerca de 1.400 itens, ante 350 apurados no IPCA, que é o índice oficial utilizado pelo Banco Central para balizar sua política monetária.
Em janeiro, o mercado estimava um IGP-M de 4,3% para todo o ano 2020. No entanto, de janeiro até julho, o IGP-M já apresenta alta de 6,7%.
Quando olhamos exclusivamente os produtos agrícolas, é possível constatar que a carestia está se acelerando fortemente. O gráfico a seguir mostra a média móvel acumulada em 12 meses da evolução do índice de preços dos produtos agrícolas no atacado. No acumulado de 12 meses, a alta de preços foi de 28%.
Gráfico 3: taxa de variação de preços dos produtos agrícolas no atacado (média móvel acumulada em 12 meses).
Mas não são só os produtos agrícolas. Os metais industriais também estão apresentando uma forte aceleração de preços. O gráfico a seguir mostra a evolução desses preços.
Gráfico 4: evolução dos preços do metais industriais
Causas
As causas dessa carestia são basicamente duas.
1) A forte desvalorização cambial vivenciada pelo real perante o dólar (que saltou de R$ 4,02 no fim de 2019 para os atuais R$ 5,34) não só encareceu diretamente a importação de insumos industriais, como também estimulou enormemente a exportação de alimentos (ver também aqui). Quanto mais exportação de alimentos, menor a oferta no mercado interno.
2) A vigorosa criação de moeda feita tanto pelo governo brasileiro quanto pelos governos ao redor do mundo, como forma de tentar combater os efeitos recessiva da pandemia de Covid-19, está estimulando a demanda.
O gráfico a seguir mostra a evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais saldos em conta-corrente) no Brasil.
Gráfico 5: evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais saldos em conta-corrente) no Brasil até junho de 2020
É inflação de gente grande, mas nas manchetes figura a nota de R$ 200.
Distrações
O público, distraído, permanece com foco no IPCA. Meta oficial de inflação há décadas, deixou de ser um bom medidor da carestia sofrida pelo brasileiro comum, ao ser manipulado por desonerações e outros truques. O exemplo clássico ainda é o do governo Dilma: de 2012 a 2014, o IPCA se manteve artificialmente baixo por causa do congelamento do preço da gasolina e por reduções artificiais de até 25% no preço da energia elétrica.
Analistas apontaram nos últimos dias que R$ 100 no início do Plano Real compravam 100 dólares e hoje compram apenas 19 dólares, e que a cesta básica em São Paulo custava R$ 68 em 1994, ante mais de R$ 550 hoje (o que é um fato). (O grama do ouro custava 12 reais e hoje custa 357 reais; e, de acordo com o IPCA acumulado, algo que custava 100 reais custa hoje 621 reais)
Porém, poucos mencionaram o aumento brutal da moeda em circulação (gráfico 5) promovido pelo Banco Central, o qual se intensificou ainda mais a partir de março, quando a oferta monetária passou de R$ 410 bilhões em fevereiro para R$ 540 bilhões em julho, aumento superior a 30%.
O auxílio emergencial contribuiu para essa recente disparada, bem como o entesouramento — em épocas de enorme incerteza econômica, como a atual, as pessoas preferem ter em mãos moeda em espécie.
Com a demanda crescente por moeda durante a pandemia acompanhando a oferta, é natural que a inflação de preços ao consumidor leve um tempo para se manifestar de forma mais vigorosa no índice agregado de preços (IPCA).
A queda nos preços da gasolina (por causa da forte queda no barril de petróleo), da energia elétrica (por causa da redução do consumo das empresa e de desonerações dos governos estaduais) e das mensalidades escolares também está ajudando enormemente a segurar o IPCA.
No entanto, isso pode mudar rapidamente assim que a demanda por moeda volte aos níveis normais. E os preços dos alimentos — setor no qual não houve contenção do consumo — são um bom indicativo.
O lobo-guará é uma mera consequência
O problema, já está claro, não está nas novas cédulas de R$ 200. Estas são apenas consequência da expansão monetária, que já está em curso antes mesmo delas. A inflação de preços derivada dessa expansão monetária é um imposto invisível, que pune particularmente os mais pobres.
O saudoso Joelmir Beting dizia que “a economia, ciência severa da escassez, enquadra a política, utopia alegre da abundância”. Infelizmente, a política populista atual prevalece sobre o conhecimento econômico.
A chegada do lobo-guará está distraindo a opinião pública do verdadeiro problema: os gastos do estado.
Toda a expansão monetária está sendo feita exatamente para possibilitar a manutenção dos gastos do estado, os quais agora foram inchados pelo Orçamento de Guerra criado para combater os efeitos da Covid-19.
A subida dos índices de preço enfatiza a urgência do controle de gastos públicos, mesmo diante de todas as dificuldades causadas pela pandemia. Sim, a causa fundamental de toda essa expansão monetária é o tamanho dos gastos públicos. Não se trata, obviamente, de reduzir o apoio aos mais necessitados, mas de acelerar as privatizações, a reforma administrativa e o enxugamento da máquina. É preciso cortar desde já as duas rubricas que representam cerca de 80% do total: salários dos servidores e aposentadorias de forma geral.
O leitor pode se perguntar: “A inflação está aumentando ou é impressão minha?”. Atenção ao factoide diversionista: a impressão é do BC mesmo.
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(Helio Beltrão)
Artigo publicado anteriormente em: https://www.mises.org.br/article/3279/a-cedula-de-r-200-nao-e-o-problema-a-inflacao-e
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