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Nelson Rodrigues nos deixou há 40 anos e está mais vivo que nunca

Num 21 de dezembro, quarenta anos atrás, o escritor e jornalista Nelson Rodrigues nos deixou. Sua obra, desde então, vem sendo virada e revirada do avesso. E frases suas, como aquela que diz ser burra toda a unanimidade, são citadas por milhares de pessoas – incluindo aquelas que nunca leram uma só palavra escrita por este pernambucano radicado no Rio de Janeiro.

Cresci ouvindo que Nelson era meu parente distante. Afinal o sobrenome de sua mãe é Marinho Falcão (o mesmo de minha família paterna) e seus antepassados maternos são pernambucanos, como eu. Nunca me lancei em uma busca séria sobre a genealogia para encontrar um parente comum entre nós. Talvez faça isso quando estiver aposentado ou com muito tempo sobrando. Por enquanto, nem pensar.

Ainda no início da adolescência, fiz o meu primeiro contato com suas crônicas, através da série “A Vida Como Ela É”, naquela época republicada em uma revista semanal que não mais existe. Era um universo cheio de sordidez, sexo e intriga. Senti no início uma certa repulsa pelo teor da narrativa, mas, ao mesmo tempo, experimentava uma curiosidade cada vez maior e não perdia um episódio. Havia uma sucessão de canalhas magros, mulheres impiedosas e pessoas de boa fé que eram sempre ludibriadas por alguém – o universo rodriguiano nos levava a um submundo devasso que parecia ocorrer paralelamente ao cotidiano insosso e certinho. Não é à toa que um dos principais livros escritos sobre ele, a biografia produzida por Ruy Castro, se chama “O Anjo Pornográfico”.

Mas a obra de Nelson Rodrigues abriga muito mais que a devassidão que está presente em várias crônicas e peças de teatro (algumas das quais viraram filme). Seu olhar cínico e pragmático sobre a sociedade e a política conseguia refletir tão bem o nosso dia a dia que era uma espécie de tapa na cara dos mais puritanos.

Ele passou boa parte de sua vida nas redações e, por isso, conhecia as entranhas do jornalismo como ninguém. Ele repetia, sempre, que os jornalistas alugavam sua pena aos donos das publicações e nem sempre o texto que se lia era a opinião pessoal de um redator, mas sim uma encomenda do dono ou do diretor de redação.

Vamos usar uma crônica publicada em 1969 para ilustrar esse exemplo e também um determinado momento daquele final dos anos 1960 que parece bastante com o nosso cenário de 2020. O texto se chama “É uma selva de redatores repórteres e estagiárias” e foi impressa na edição de O Globo lançada em 9 d julho de 1969.

Nelson conta, nesta coluna, vários episódios vividos pelos profissionais de imprensa. Mas um me chama atenção, envolvendo o jornalista Alcindo Guanabara. Era o início da Semana Santa e ele já estava indo embora quando o diretor de redação o chamou: “Escreve um artigo sobre Cristo”. Alcindo não titubeou: “Contra ou a favor?”.

Essa resposta irônica revela o quanto a linha editorial é controlada dentro de uma publicação. Hoje, é verdade, se trabalha com muito mais liberdade, diante de parâmetros que são negociados previamente. Mas assuntos polêmicos acabam sendo discutidos coletivamente, em um processo que envolve as chefias e, às vezes, os acionistas dos veículos.

No mesmo texto, o autor reflete sobre algo que parece muito com a intolerância que presenciamos atualmente nas redes sociais, que têm como ícone supremo a famosa cultura de cancelamento. Confiram: “Há, repito, um ressentimento difuso, volatilizado, atmosférico. Um ressentimento que absorvemos pela respiração. E as vítimas são, por vezes, pessoas que amamos, respeitamos e admiramos. (…) Bem sei que certos sujeitos precisam odiar. Odeiam não sabem quem e por quê. E quando, eventualmente não odeiam, rosnam de imprudência e frustração”.

Essas palavras, redigidas há mais de cinquenta anos, mostram uma capacidade única – a de não ser datado pelos acontecimentos de sua era. Quando um texto sobrevive à ação corrosiva de mais de meio século é sinal de que o autor sobrevive em nossas mentes. E que sua partida deve ser lamentada todos os dias.

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