Novamente, a pandemia está sendo usada como instrumento político e a bola da vez é o processo de vacinação, que passou a ser discutido publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo governador João Doria, com participação especial do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
A última etapa da politização de questões sanitárias que deveriam ser exclusivamente regidas por critérios técnicos começou quando, dias atrás, Bolsonaro afirmou que a vacina contra o coronavírus não deveria ser obrigatória. Essa afirmação, no entanto, vai contra o que está registrado no Plano Nacional de Vacinação do governo federal. No PNI, há uma lista de imunizantes considerados obrigatórios para crianças e adolescentes, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Os pais que se recusarem a levar os filhos para se imunizarem, assim, podem sofrer sanções legais. Neste caso estão doses contra sarampo, pólio, meningite e outras doenças. Mas uma simples dose contra a influenza, a gripe comum, também está listada como mandatória.
Na prática, porém, isso tem tanto efeito quanto obrigar os eleitores a votar. No último pleito, apesar dessa obrigatoriedade, tivemos abstenções significativas, ultrapassando a marca de 30 % do eleitorado no Rio de Janeiro e em São Paulo.
A obrigatoriedade da vacinação tem sido esquecida pelos negacionistas – os pais de família que preferem deixar seus filhos sem imunização por acreditarem em teorias da conspiração. Por esta razão, inclusive, o sarampo, que já foi uma doença erradicada no Brasil, voltou com razoável força desde 2019. Neste caso específico, é preciso inocular uma enorme dose de responsabilidade nesses adultos para trazer a imunização à família. A alternativa ao negacionismo é a dor, sofrimento e, em alguns casos, mesmo a morte.
Teorias da conspiração não faltam quando o tema é covid-19, com foco especial nas vacinas que foram criadas a toque de caixa para combater a pandemia. Uns afirmam que a inoculação chinesa, feita muito rapidamente, não presta e traz efeitos colaterais (ninguém sabe exatamente dizer a razão pela qual seria ineficaz ou quais os resultados indesejados decorrentes de uma aplicação); outros afirmam que os imunizantes criados a partir de RNA mensageiro podem causar mutação genética (não há comprovação científica disso, embora uma parte de nosso DNA tenha sofrido mutações quase indetectáveis por conta do contato da humanidade com diversos vírus ao longo dos séculos).
Na rasteira de tudo isso temos ainda o governador Doria em busca de um fato consumado ao divulgar um calendário de vacinação com início em 25 de janeiro de 2021. A Anvisa estrilou porque considera o tempo disponível para aprovação da vacina muito curto. E o que deveria ser novamente um quesito científico se transformou em um debate político. Doria chegou a dizer, ontem, que iria levar o pedido de liberação ao Supremo Tribunal Federal. O. K., sabemos que o Brasil tem uma certa tendência a judicializar vários assuntos – mas atribuir ao STF uma decisão que envolve questões sanitárias, médicas e científicas em um só balaio parece ser absurdo.
Resta saber, nesta queda de braço, se Bolsonaro e Doria são sinceros em suas atitudes. Bolsonaro é mesmo a favor da não obrigatoriedade da vacinação ou se manifesta assim porque João Doria pensa diferente? Doria marcou o início da imunização em São Paulo para o dia 25 de janeiro por que quer rapidez no processo ou apenas para colocar o governo federal em uma posição defensiva? Pazuello está falando a verdade quando diz que a Anvisa precisa de pelo menos 60 dias para aprovar a eficácia da vacina, seja ela comprada por Doria ou por outro? E as agências internacionais, podem validar o uso das vacinas, de maneira a encurtar os prazos de aprovação pela Anvisa?
Vamos supor que os três personagens envolvidos nesta quizumba estejam movidos pelas mais nobres das intenções. Mesmo assim, estão sacudindo tanto o barco que é impossível não termos vítimas durante o processo. Como essa briga está longe de acabar, é preciso apelar para os negociadores de crises – pessoas com trânsito entre as partes que possam falar com Doria e Bolsonaro para encontrar um denominador comum e disparar soluções que promovam o bem-estar e a imunização dos cidadãos.
Os vices de ambos reúnem qualidades para esse tipo de negociação. Tanto Hamilton Mourão como Rodrigo Garcia conseguiriam costurar um armistício que fosse bom para a Nação. Mas Mourão está um tanto queimado junto a Bolsonaro. Outra alternativa, assim, deve ser encontrada. Dentro do Centrão, que apoia Bolsonaro, há inúmeros políticos que dispõem desse perfil – e do mesmo partido de Garcia, o Democratas. É hora de prevenirmos, não remediarmos, uma situação de confronto que pode piorar o que já está ruim. Afinal, os números da pandemia pioram a cada dia, mas não parecem assustar ninguém. Essa é uma combinação lapidar para uma tempestade perfeita.
De quem é a culpa? Das duas principais autoridades envolvidas neste enredo trágico. Bolsonaro e Doria dividem essa conta na base do fifty-fifty.