Em outubro do ano passado, escrevi um texto sobre o chamado direito ao esquecimento. O motivo foi a pauta do Supremo Tribunal Federal sobre causa envolvendo o assassinato de uma jovem em 1958. O processo, no qual a família da vítima pede que se apague o evento da memória e dos registros jornalísticos, voltou a ser votado nessa semana. Ontem, o STF decidiu: por nove votos a um, não existe tal direito na legislação brasileira e, portanto, fatos ocorridos no passado não podem ser fadados ao esquecimento.
Antes de entrar nessa discussão, é importante ressaltar que há dois tipos de interessados no direito ao esquecimento.
O primeiro reúne o lado das vítimas – é o caso do processo julgado hoje pelo Supremo. Em 2004, o programa Linha Direta exibiu um episódio dedicado ao crime de 1958 e os familiares da jovem assassinada pediram à Justiça que o caso não fosse mais relembrado pelos meios de comunicação. Entende-se o lado da família. Ficar revivendo uma tragédia indefinidamente é algo torturante e cruel.
Por outro lado, há outro tipo de interessado na ausência de lembranças: os algozes e suas respectivas famílias. Tome-se como exemplo o assassino de Ângela Diniz, Doca Street. Durante muitos anos, ele pediu que o esquecessem. Mas seu crime sempre voltava a ser discutido. No ano passado, ele resolveu sair do ostracismo forçado e escreveu um livro sobre sua versão do crime. Morreu três meses após o lançamento da obra.
Street foi protagonista de um dos casos mais horrendos de assassinato passional de mulheres. Enlouquecido de ciúme, matou Diniz após uma discussão, que encerrou com a seguinte frase: “Se você não vai ser minha, não será de ninguém”. Disparou quatro tiros e depositou a arma ao lado do corpo da namorada. Seu advogado conseguiu livrá-lo com uma pena branda sob o repugnante argumento de “legítima defesa da honra”.
Monstros como Street também são lembrados como frequência. Um deles é o cantor Lindomar Castilho, que matou sua ex-mulher com cinco balas pelas costas. Aliás, balear mulheres nessa situação parece ser uma constante entre covardes homicidas. O jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves também matou sua ex-namorada também com um tiro por trás. Esses dois, seguramente, se inspiraram na tese estúpida de “legítima defesa da honra” e escolheram tirar uma vida porque essas mulheres não poderiam se relacionar com ninguém além deles.
Embora facínoras precisem ser constantemente relembrados para prevenirmos tragédias futuras, os holofotes sobre o passado desprezível de cada um acaba respingando nos familiares que nada têm a ver com esses criminosos. Tome-se como exemplo, June Oswald, filha de Lee Harvey Oswald (foto).
Oswald é conhecido no mundo inteiro, pois ele foi o homem acusado de matar o presidente John Fitzgerald Kennedy (naquele mesmo dia, assassinou a sangue frio um policial que lhe fez algumas perguntas e se escondeu em um cinema, onde entrou sem pagar) em 22 de novembro de 1963. Ele foi morto dois dias depois, tornando o caso mais nebuloso. Quando morreu, Oswald tinha duas filhas pequenas, que cresceram sob o estigma de carregar uma das alcunhas mais desfavoráveis de todos os tempos.
Em 1995, a New York Times Magazine publicou o perfil de uma dessas filhas, June. Ela, que deu a entrevista sob a condição de que seu sobrenome de casada não fosse revelado na reportagem, disse que desde a infância adotara o último nome de seu padrasto, Porter, para evitar o assédio. Quando saía da adolescência, um colega de trabalho lhe disse que ela era bastante parecida com “uma jovem Marina Oswald” (sua mãe). Imediatamente, no entanto, o rapaz pediu desculpas e disse que não “tinha a intenção de insultá-la” com aquele comentário.
Como se vê, uma tragédia traz sofrimento dos dois lados da trama.
Durante a votação, vários juízes do STF reforçaram um ponto, o de que há mecanismos legais para punir excessos que surgem da exposição de um fato nefasto do passado. Mas, no caso dos carrascos, perpetradores e sanguinários, não há conversa. “Os autores de crimes não teriam direito ao esquecimento”, afirmou o presidente do Supremo, Luiz Fux. A esse argumento é preciso somar outro: se não pudermos lembrar os casos malignos da história, corremos o risco de ser lenientes com certas situações que podem repetir erros pretéritos. Em nome das vítimas do passado, não podemos deixar que isso ocorra.