Uma pesquisa de 2020, realizada pelo Datafolha, mostrou que 12 % da população brasileira acham indiferente vivermos sob uma democracia ou uma ditadura. E 10 % acreditam que, em determinadas circunstâncias, um regime de exceção é melhor que um sistema democrático. Ou seja, quase um quarto dos brasileiros não podem ser classificados como fãs de um governo eleito pelo voto da população.
A importância dessa enquete ganha nova força com os recentes acontecimentos políticos no Brasil. O recente troca-troca no alto comando das Forças Armadas trouxe bastante especulação sobre se o presidente Jair Bolsonaro teria ou não pressionado os militares a apoiar medidas de exceção que seriam tomadas em seu governo.
Os indícios são fortes de que isso teria ocorrido – e a movimentação dos oficiais neste episódio dá a entender que houve, de fato, algum tipo de pressão. A preocupação entre a classe política foi gritante e houve muita tensão no ar durante dois dias. A inquietação foi tamanha que gerou uma carta conjunta assinada por presidenciáveis oposicionistas (menos Luiz Inácio Lula da Silva e Sergio Moro): Ciro Gomes, Eduardo Leite, João Amoêdo, João Doria, Luciano Huck e Luiz Henrique Mandetta. Escreveram os candidatos: “Fora da Democracia o que existe é o excesso, o abuso, a transgressão, a intimidação, a ameaça e a submissão arbitrária do indivíduo ao Estado”.
O desfecho deste acontecimento, no entanto, foi uma tentativa de se esfriar os ânimos. O novo ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto, disse que o “o maior patrimônio de uma nação é sua garantia de democracia”. A escolha do novo comandante do Exército, o general Paulo Sérgio de Oliveira, por exemplo, seria uma mostra de que a independência e o legalismo que encontramos entre os generais da ativa foram respeitados – Oliveira, em entrevista recente, não escondeu que pensa de forma diferente de Bolsonaro no tocante ao enfrentamento da pandemia.
Aqui, porém, vale uma reflexão intermediária: Braga Netto também afirmou que “militares não faltaram no passado e não faltarão sempre que o país precisar”. Essa é uma frase dúbia, que deveria ser evitada em um momento como o atual. Afinal, o exército apoiou duas ditaduras no século 20: a de Getúlio Vargas e o movimento de 1964.
Voltando ao estudo do Datafolha realizado em 2020: como quase 25 % dos cidadãos podem achar que a ditadura é igual ou melhor que a escolha de um governo pelo voto? Sem a democracia, por maiores que sejam os problemas que surgem com escolhas eventualmente erradas do povo, o país empobrece em todos os aspectos, mesmo que existam milagres econômicos pontuais, que mais tarde são desmontados pelas circunstâncias.
A censura e o autoritarismo sufocam a sociedade e levam medo ao cidadão comum. O estado de direito desaparece e a Justiça passa a servir apenas ao poder. O cidadão perde suas garantias mínimas. Qualquer autoridade passa a ser absoluta. Quer um exemplo? No ano de 1968, na reunião do Conselho de Segurança do Brasil, em que se votou o AI-5, o único a se manifestar contrário ao ato foi o vice-presidente Pedro Aleixo. O presidente da República, o general Artur da Costa e Silva, o inquiriu sobre as razões de seu voto. Travou-se, então o seguinte diálogo:
– Você não confia em mim?
– No senhor eu confio. Eu não confio é no guarda da esquina.
Como se pôde ver, Aleixo estava certo. Os porões da ditadura instituíram a tortura como protocolo básico, com a ajuda de vários militares de baixa patente, equivalentes verde-oliva aos guardinhas de esquina. E quanto a Pedro Aleixo? Ele era um civil ocupando um cargo decorativo. Quando Costa e Silva sofreu um derrame e, mais tarde, morreu, o vice não assumiu. Uma junta militar governou o país até que se escolheu Emílio Garrastazu Médici (a trinca de oficiais que passou a governar o Brasil ganhou o apelido de “os três patetas” até entre as Forças Armadas).
Com o fim da democracia, não há prestação de contas. Não há preocupação com minorias ou maiorias – prevalece apenas a vontade do pequeno grupo que está no poder. Com a falta de garantias individuais, instaura-se em algum momento o terror patrocinado pelo Estado, que persegue aqueles que se colocam na oposição (no Brasil, durante os anos de chumbo, muitos guerrilheiros ou militantes mais radicais queriam trocar o regime militar por uma ditadura do proletariado – mas vamos deixar essa discussão para outro dia. De qualquer forma, é preciso condenar qualquer forma de ditadura, de esquerda ou de direita).
Flertar com o autoritarismo, porém, não é uma ideia nova. Como se sabe, entre aqueles que conspiravam pela República durante o Império estavam os positivistas, discípulos do filósofo Augusto Comte. Eles queriam o fim da Coroa, mas desejavam um regime dirigido por intelectuais, cientistas e tecnocratas, pois acreditavam que o povo não estava preparado para decidir seu próprio futuro e, assim, precisaria de um grupo de sábios para guiá-lo (no fundo, foram voto vencido, mas emplacaram um slogan do grupo na bandeira nacional: Ordem e Progresso).
Embora os positivistas quisessem uma elite comandando o país no final do século 19, isso não quer dizer necessariamente que os mais ricos de hoje flertem com o autoritarismo. Pelo contrário. A defesa da democracia, segundo a pesquisa do Datafolha, cresce de acordo com o grau de instrução e com maior renda. Entre quem possui apenas o diploma de ensino fundamental, 66% defendem a democracia. Já entre os que possuem formação superior, esse índice é de 91%.
Apostar em golpes contra o regime democrático é um salto no escuro. Sabe-se como a coisa começa, mas não se tem ideia de como termina. Geralmente é em sangue, suor e lágrimas. Mas, por que essa obsessão pelo autoritarismo que alguns carregam no peito? Muitos têm obsessão por ditadores e os consideram figuras paternas, nas quais se pode confiar tudo. Um exemplo disso é a quantidade de apoiadores que Getúlio Vargas teve, apesar de dirigir o país com mão de ferro entre 1930 e 1945. Em 1950, voltou ao poder pelo voto direto. Acusado de conspiração e de tentativa de assassinato, suicidou-se.
Não tivemos no Brasil um grupo de “founding fathers” (pais fundadores) de nossa nação, como existiu nos Estados Unidos. Apesar dos valores defendidos por estes indivíduos, os EUA tiveram de passar por muitos anos de aprendizado até eleger políticos que respeitaram os conceitos de honestidade, dignidade e respeito. Esses fundadores queriam que o povo tivesse voz no governo através de seus representantes eleitos. Assim, o povo – não o governo – faria as leis.
Depois de enfrentar inúmeros escândalos de corrupção e desvios de verbas públicas entre o final do século 19 e início do século 20, os Estados Unidos se aprumaram e se tornaram uma democracia sólida, exemplo para todo o mundo. “Uma nação que tem medo de que seu povo julgue a verdade e falsidade abertamente é uma nação com medo de seu próprio povo”, disse o presidente John Fitzgerald Kennedy. Pelo jeito, temos quase 25 % de brasileiros que vivem esse temor: deixar o poder nas mãos do povo. Há espaço para pessoas assim em uma sociedade que vive em pleno século 21? Dificilmente. Como conviver com essas pessoas? Só se for evitando estritamente qualquer tipo de conversa que envolva política – do passado, do presente ou do futuro.