Há exatos quarenta anos, tive uma experiência marcante: pela primeira vez, fui tomado por um sentimento de inveja profunda. Uma emoção poderosa e marcante, que corrói por dentro e domina sua conduta e seu comportamento — e cuja existência nos faz sentir vergonha a cada vez que nos olhamos no espelho.
Após entrar na faculdade, com o objetivo de me formar jornalista, decidi que queria ser escritor. Fui tomado por uma fúria criativa durante meses e produzi vários contos. Na minha opinião, era um trabalho muito bom, moderno e inovador. Mas não era o único a pensar assim – eu sempre perguntava aos amigos o que eles achavam dos meus escritos. Aparentemente, eles gostavam e quase sempre se mostravam eufóricos com aquilo que liam. Também tinha o cuidado de apresentar os manuscritos para o aquele que julgava ser um leitor implacável – meu pai. E não é que ele também gostava do que lia?
Escrevia todos os dias, batucando histórias em minha Olivetti Lettera 22. Cheguei a trocar a fita da máquina duas vezes em seis meses, de tão frenética que era minha atividade. Quando cheguei a um volume razoável de páginas, tomei coragem e entrei em contato com a tia de um amigo que trabalhava na Companhia das Letras, que dava seus primeiros passos. Falei com ela ao telefone, que se mostrou super receptiva e fui lá entregar uma maçaroca de papel com uma compilação de meus contos. Era uma segunda-feira. Ela olhou a pilha de textos e pediu que eu voltasse na quinta-feira, às duas da tarde.
Quase não prestei atenção às aulas naquela semana ou conversei com meus amigos. Finalmente, chegou a tal quinta-feira: lembro que era um dia cinzento e muito frio. Fui até o escritório da editora, que ficava no centro da cidade, e tomei uma canseira: uma hora esperando.
A tia do amigo enfim de recebeu e disse que enxergava naquele material um futuro escritor. Mas que eu ainda estava longe disso. Fiquei um tanto atônito, pois já me imaginava assinando um contrato e vendo um livro de contos publicado em dois meses. A realidade, no entanto, se impunha friamente – na mesma temperatura daquele dia gélido. Fiz algumas perguntas protocolares e fui para casa, absolutamente devastado.
Fiquei macambúzio durante alguns dias, digerindo a rejeição e me perguntando se eu teria mesmo talento para escrever ou não. Como nunca fui de falar muito, meus amigos não perceberam o que se passava comigo.
Foi quando a inveja bateu dentro de mim, de uma forma desconcertante e poderosa.
Estava na cantina da faculdade, sentado sozinho em uma mesa grande. E começaram a chegar alguns colegas, entusiasmadíssimos. Eles me contaram, então, que um dos alunos da classe, o Marcelo Rubens Paiva, tinha lançado um livro baseado em sua vida (Marcelo tinha ficado paraplégico ao bater a cabeça em uma rocha após mergulhar em um lago; além disso, ele acabava sendo uma espécie de celebridade da minha turma, pois era filho do deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar).
Fiquei estupefato e pensei comigo: “esse cara deve ser muito bom, já que eu ainda estou longe de merecer ser publicado”. Naquela tarde, comprei o livro do Marcelo (“Feliz Ano Velho”, cujo lançamento completa quarenta anos em 2022) e o devorei em questão de horas. Gostei, mas não fiquei impressionado. Na verdade, fiquei com uma dor de cotovelo gigantesca. Eu me achava um escritor melhor que o Marcelo e era um injustiçado.
Naqueles meses, tudo girava em torno do Marcelo na faculdade, algo absolutamente natural, pois o livro foi um sucesso incontestável. Quanto mais se falava nele, porém, mais inveja eu tinha.
Até que, um dia, eu conheci uma moça que fazia Letras e estava estagiando em uma editora pequena. Disse que escrevia contos e ela pediu para ler. Marcamos na lanchonete da minha escola. Cheguei um pouco antes e tirei o calhamaço de textos para escolher alguns. Nesse exato momento, entrou pela porta em sua cadeira de rodas o Marcelo, empurrado por um enfermeiro. O lugar estava vazio e ele parou do meu lado. Viu aquele monte de papel e começou a perguntar o que era aquilo. Disse que eram contos que tinha escrito e que iria apresentar para uma conhecida. Ele pegou um que tinha apenas uma página e leu rápido.
“Isso é muito bom”, disse ele. “Deixa eu ver outro”. Passei outro e ele me olhou com um olhar – pasmem! – de inveja. Ele disse: “meu sonho é escrever ficção, como você. Mas eu não consigo”.
Falamos mais um pouco, chegaram outras pessoas e ele se afastou. A moça da editora chegou, foi simpaticíssima e começou a ler meus contos, em uma cantina que começava a ficar barulhenta. Depois de ler quatro contos, ela elogiou muito o material e pediu para levar tudo e mostrar para a chefe dela. Como aqueles eram originais, fomos até uma portinha ao lado da lanchonete e fiz cópias xerox da minha obra inédita.
Ela levou tudo, disse que me ligava para dar um retorno. E nunca mais falou comigo (talvez eu não tivesse mesmo talento para a coisa).
Naquele dia, no entanto, a minha inveja foi murchando, murchando e sumiu. Afinal, a pessoa por quem eu nutria esse sentimento também o sentia por mim (em proporções bem diferentes, eu sei…).
Naquele mesmo ano, uma colega da faculdade começou a trabalhar como atriz na peça “Amadeus”, que mostra a relação entre o gênio Wolfgang Amadeus Mozart e o medíocre e invejoso Antonio Salieri (na imagem, o ator F. Murray Abraham interpreta o compositor italiano no filme “Amadeus”). Ao final do espetáculo, percebi que havia me livrado totalmente daquele sentimento pernicioso e que, se não conseguisse ser um Mozart na vida, jamais me transformaria em um Salieri.
Esse episódio foi muito importante para a formação da minha personalidade e me fez um admirador inconteste do sucesso. Inveja? Nunca mais. Ah, ia esquecendo. Anos mais tarde, Marcelo conseguiria escrever ficção. E eu publicaria um romance, que foi bem recebido pela crítica e esgotou sua primeira tiragem.
Se eu tivesse sido dominado pelo rancor e pela inveja, onde estaria eu agora?
Com certeza, em um lugar muito pior que o atual.