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As fronteiras entre a ficção e a vida real

Há alguns meses, engatei uma conversa com um amigo, o psiquiatra Jorge Forbes, e falamos sobre literatura, discutindo alguns títulos lançados recentemente. Ele me perguntou se os livros escritos por Annie Ernaux, fortemente baseados em sua vida particular, eram uma tendência que seria seguida por outros autores. Ponderei que toda obra literária, ficção ou não, continha elementos das vidas de quem a escrevia – assumindo ou não a interferência da realidade no universo ficcional. Falamos um pouco sobre alguns métodos de escrita e, na dinâmica da conversa, acabamos mudando de assunto.

Nessa semana me lembrei daquele colóquio com Jorge, assim que terminei de ler o livro de contos “Onze Portas da Escuridão”. A obra, da escritora inglesa C. J. Tudor, foi produzida no ano retrasado e surgiu após uma crise pessoal. Ela havia escrito um livro durante a pandemia de 2020. Logo no início do ano seguinte, seu pai faleceu, após uma doença que surgira em 2019. Ao reler os originais, não ficou nem um pouco satisfeita com o resultado. Pediu aos editores, então, que o último livro não fosse lançado e que recebesse algum tempo para tocar dois projetos. Um deles foi justamente o livro de contos, lançado no Brasil em março.

Antes de cada conto, há uma introdução que mostra de onde surgiram as ideias para cada história – e, a partir da leitura, pode-se enxergar perfeitamente a interferência da vida real na ficção que saiu da cabeça de Tudor. Foi uma espécie de comprovação da tese que defendi junto a Jorge Forbes, baseada em minha experiência pessoal. Meu único livro de ficção, “O Jornalista, o Escritor e o Aviador”, lançado em 2007, tem elementos históricos e uma narrativa que conta com muitos elementos de minha experiência particular.

Muitas vezes, o escritor trabalha como o ator, que utiliza emoções de seu passado para dar veracidade à atuação – especialmente no momento em que o roteiro requer o surgimento de lágrimas. Existe, porém, uma diferença básica. Atores traduzem as emoções de um roteiro de forma física. Já um escritor usa as emoções que habitam dentro de si para criar uma conexão com o leitor. Romancistas, poetas, roteiristas, cronistas ou dramaturgos contam histórias para traduzir os sentimentos que afloram na maioria das pessoas. Ao entrar em contato com essas emoções expressas na ficção, o leitor experimenta o estado de catarse e vê, sem controle nenhum, sentimentos escondidos dentro da alma aflorarem com a leitura.

Recentemente, duas autoras vêm fazendo isso de forma inteligente: Colleen Hoover e Elena Ferrante. Hoover é americana e começou a escrever aos 42 anos (nesta semana, ela tem quatro títulos entre os dez mais vendidos da revista Veja); já Ferrante é italiana, mas o grande público não sabe sua verdadeira identidade (seus livros são escritos sob um pseudônimo). Embora a temática destas escritoras e seus estilos sejam completamente diferentes, as duas têm uma grande capacidade de dissecar a alma humana e falar sobre a fragilidade que escondemos dentro de nós. Além disso, ambas possuem uma habilidade enorme de falar sobre amor, ódio e indiferença. Aos lermos sobre seus personagens, acabamos aprendendo sobre nós mesmos – seja porque nos identificamos com aquilo que lemos ou porque a narrativa nos faz refletir sobre nossos comportamentos.

Voltando a Tudor (nome de batismo: Caroline Jane). Ela tentou publicar seus livros durante dez anos, sendo seguidamente rejeitada pelas editoras inglesas. Ela é casada, tem uma filha, foi repórter, redatora e até passeadora de cães. Seus livros muito têm a ver com a obra do americano Stephen King, pois também usa elementos de suspense e de terror. Mas seu estilo é diferente do de King, que já elogiou publicamente os escritos da inglesa. Uma curiosidade: sempre que menciona um odor ao descrever um local, os cheiros descritos nunca são agradáveis.

Sua obra de estreia, “O Homem de Giz”, a catapultou para o estrelato literário e muitos viram na trama uma semelhança com o roteiro da série “Stranger Things”. Só que o livro havia sido escrito antes que o seriado tivesse sido rodado e lançado. Trata-se de uma escritora que não tem vergonha de entreter o público com histórias criativas e de final surpreendente. Uma mestra do “plot twist” (em português, uma “reviravolta na trama”), ela consegue fazer com facilidade algo muito difícil: trabalhar muito bem no eu lírico masculino sem recorrer a chavões ou clichês.

Ela escreveu, até agora, seis livros. Vale a pena conferir.

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