Neste feriado, logo cedo, estava ouvindo uma canção antiga de Paul McCartney, chamada “Venus and Mars” (“Vênus e Marte”). Comecei a pensar sobre esses dois planetas, batizados respectivamente em homenagem à deusa romana do amor e ao deus da guerra. Não deve ser à toa que a Terra esteja localizada, no sistema solar, entre esses dois astros. Afinal, os terráqueos estão sempre enfrentando forças contrárias dentro de suas almas – de um lado, o amor e os sentimentos nobres; de outro, a raiva que impulsiona a guerra e emoções negativas.
Tomemos como exemplo, o próprio Paul McCartney. Ele é compositor de algumas das músicas mais açucaradas dos Beatles, como “Yesterday”, “Here, There and Everywhere” e “And I Love Her”. Mas também compôs canções bem barulhentas, como “Helter Skelter”, Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e “Back in the U.S.S.R.”
Somos constantemente o resultado dessa soma de vetores contrários. E, por isso mesmo, nos comportamos de forma contraditória – ou estamos em constante estado de metamorfose ambulante, como diria Raul Seixas. Falando em Raul, talvez a melhor representação de nossos flagrantes contrastes internos esteja na letra de “Gita” (que, por sinal, é do escritor Paulo Coelho): “Eu sou o seu sacrifício/ A placa de contramão/ O sangue no olhar do vampiro/ E as juras de maldição/ Eu sou a vela que acende/ Eu sou a luz que se apaga/ Eu sou a beira do abismo/ Eu sou o tudo e o nada […] Eu sou a mosca da sopa/ E o dente do tubarão/ Eu sou os olhos do cego/ E a cegueira da visão/ É, mas eu sou o amargo da língua/ A mãe, o pai e o avô/ O filho que ainda não veio/ O início, o fim e o meio”.
Lidar com nossas contradições pode ser algo exasperante – especialmente por que toda a sociedade nos cobra coerência o tempo todo. Os mesmos indivíduos que enxergam pura poesia em canções como “Metamorfose Ambulante” e “Gita” não conseguem perdoar um comportamento incoerente de nossa parte. A sociedade cobra de todos uma atitude estável, constante e previsível.
Ocorre que vivemos em um pêndulo que nos leva de Vênus a Marte – às vezes, em questão de segundos. Isso nos transforma em seres de difícil leitura e pode incomodar muitas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, pode ser aquilo que nos transforma em indivíduos interessantes.
O planeta e a deusa Vênus geralmente são associados ao universo feminino. Já Marte é a quintessência da expressão masculina. Há quase vinte anos, um best-seller ensinou a diferença entre os sexos: “Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus”. Pelo que me lembro da leitura, várias das características que separam esses dois gêneros ainda valem, embora a publicação seja de 1992. Mas, homens e mulheres, neste Século 21, sofreram metamorfoses irreversíveis e, agora, características de Vênus e Marte podem ser observadas em todos os seres humanos.
Entre a juventude, vê-se com maior frequência meninos sensíveis e meninas com a resolução de um trator. Isso mostra que as contradições proporcionadas por Vênus e Marte estão se espalhando de forma mais democrática entre os sexos.
O ideal seria vestir uma dessas roupas emocionais de acordo com a necessidade do momento, agindo de forma mais marciana ou venusiana. Mas isso demandaria um controle das emoções quase que impossível. O ideal, assim, é entrar em uma etapa de autoconhecimento para travar eventuais exageros – mas deixar as contradições aflorarem em função de nossa humanidade. Precisamos desse contraste de comportamento e difusão de sentimentos para entender melhor qual é nossa essência e como podemos ajudar o mundo a ser um lugar melhor para todos.
Quem melhor resumiu essa situação? O escritor, ator e diretor Orson Welles. Ele disse: “Tudo em mim é uma contradição, assim como tudo em todos os outros. Somos feitos de oposições; vivemos entre dois polos. Há um filisteu e um esteta em todos nós, e um assassino e um santo. Você não concilia esses extremos. Você apenas os administra”.