Para os mais novos, é difícil entender o poder que a TV Globo já teve no Brasil. Hoje, é uma emissora poderosa, que ainda dita modismos e consegue fazer a cabeça de muita gente. Mas, na minha infância, adolescência e início da vida adulta, a Globo literalmente mandava no país. E, em boa parte dessa época, o mandachuva da emissora não era Roberto Marinho ou José Bonifácio de Oliveira, o Bôni. O grande chefe da operação – e dono do maior salário do Brasil durante muitos anos – foi um rapaz de classe média baixa, que começou a trabalhar por imposição da mãe, ainda com 17 anos. Seu nome: Walter Clark Bueno.
Walter Clark já era um nome conhecidíssimo no incipiente mercado televisivo brasileiro quando não existia TV Globo e Roberto Marinho era associado apenas ao jornalismo impresso. Clark começou sua carreira na rádio Tamoyo, como assistente de um amigo da família. O salário prometido por esse chefe nunca foi pago. Mas ele percebeu o quanto poderia aprender naquele ambiente fervilhante de ideias e foi pegando uma chance de trabalho atrás da outra, incluindo a redação de vários programas. Depois, passou um tempo trabalhando em propaganda até chegar a grande oportunidade: entrar no departamento comercial da TV Rio.
Clark foi, em poucos anos, acumulando poderes e extrapolando a área comercial. Foi dele a ideia de se criar uma programação coerente, que seria aproveitada na Globo, e a necessidade de se criar uma rede de afiliadas para turbinar o faturamento e a audiência. Foi ele também que trouxe Boni para o barco global para implementar uma programação mais sofisticada, que também iria mexer com a receita da TV.
Ele colecionou amizades fabulosas: Lamartine Babo, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Roniquito Chevalier, Chico Xavier, Nelson Rodrigues, Chico Anysio, Antonio Maria, Ivan Lessa, Fernando Lobo, Chacrinha… Tudo isso antes de a TV Globo existir.
Um dos maiores sucessos da TV Rio era a novela “O Direito de Nascer”. Mas o Brasil vivia sob o regime militar e a censura começou a implicar com o enredo (o mocinho era filho de uma mãe solteira, adotado por uma empregada doméstica negra). Primeiro, mudaram a novela das 20:30 para às 21:30. Até que o coronel encarregado de fiscalizar a programação televisiva resolveu que o seriado teria de ser exibido às 23:30, o que arruinaria a audiência. Clark o procurou e o militar fez duas exigências. A primeira: tirar o jornalista Carlos Heitor Cony da redação e o economista Roberto Campos – logo ele, um liberal de carteirinha – do ar.
Clark colocou Cony na geladeira, mantendo seu salário, e não fez nada em relação a Roberto Campos. O tal coronel deve ter recebido uma ordem contrária de Brasília, pois nunca mais reclamou. Aliás, Campos viraria, algum tempo depois, ministro do Planejamento.
Clark apostou forte nas novelas antes mesmo de ir para a emissora do Jardim Botânico. E criou a grade de programação que funciona até hoje na Globo: duas novelas intercaladas por um noticiário.
Sua autobiografia, publicada em 1991 (“Campeão de Audiência”), mostra uma trajetória de sucesso que é interrompida por sua saída da emissora de Roberto Marinho, em 1977. Apresenta um sujeito que se misturava com o trabalho e tocava as empresas de seus patrões como se fossem suas. Percebe-se pela leitura que Clark é um executivo inteligente e habilidoso, mas sem paciência para o jogo corporativo. E uma falta de apetite para a briga. Suas desavenças com Boni e Luiz Carlos Barreto, por exemplo, não deram em nada, basicamente porque Clark não quis o confronto.
Nesse livro, ele desmistifica o acordo Time-Life, que injetou algum dinheiro na Globo durante os anos 1960 e mostra como Roberto Marinho, de fato, deixou a emissora em sua mão. Em troca, ele receberia o equivalente a 1 % do faturamento e mais 2 % do lucro (Boni, por sua vez, retirava 4 % dos lucros).
Clark se mostra uma mistura de executivo sério e compenetrado com um bon vivant sem muitos freios. Sua trajetória nos alerta para a irresponsabilidade típica dos anos 1970 e 1980: ao sair da Globo, era muito rico. Dez anos depois, porém, havia torrado toda a sua fortuna. Viveu pouco (60 anos), mas intensamente. Usou seu talento para produzir cinema (“Eu te Amo”, de Arnaldo Jabor) e teatro (“A Chorus Line”), que o levou à bancarrota. O texto mostra uma sucessão de namoradas, esposas e residências (especialmente os apartamentos no Beco das Garrafas, na rua Baronesa de Poconé e na rua Professor Gastão Bahiana — estes últimos, bem próximos um do outro, na região da Lagoa), descritas com minúncia.
Foi um ícone que se perdeu na história. Mas deixou um legado que merece ser lembrado. Suas palavras, ao se despedir de Roberto Marinho, na reunião que selou sua contratação, foram proféticas. “Vou construir uma estrutura que vai resistir aos tempos, a mim e ao senhor”, disse.
Uma resposta
infelizmente o programa roda viva 1991 tem uma entrevista com ele, mas não está na internet.