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O hábito esquecido de sublinhar frases nos livros

Na semana passada, li um livro do italiano Domenico Starnone, chamado “Laços”. Uma passagem em particular me marcou bastante. Em um determinado momento da narrativa, o personagem principal está arrumando livros que foram jogados ao chão, por conta de um assalto a seu apartamento. Segue-se, então, o seguinte parágrafo:

“Segui em frente dispondo de um lado os livros bons e, de outro, os despedaçados. Mas depois cometi o erro de folhear alguns e quase sem querer passei a ler trechos que eu havia sublinhado sabe-se lá quando. Fiquei curioso. Por que tinha circulado certas frases? O que me levara a traçar pontos de exclamação ao lado de uma passagem que, relendo agora, me parecia insignificante?”.

Deixei o Kindle de lado ao ler essas palavras.

Lembrei-me que, no passado, tive esse hábito. Mas nunca tinha reaberto os livros com passagens sublinhadas para revisitar frases que tinham me chamado a atenção anos atrás. Como o personagem de Starnone, senti a curiosidade crescer em meu peito e fui até à minha biblioteca, buscando publicações com a borda amarelada ou outros sinais de idade avançada.

Me concentrei nos cinco primeiros que encontrei e, ansioso, fui verificar se havia trechos marcados com caneta. Para minha surpresa, os cinco livros continham marcações, que nada tinham a ver entre si.

O primeiro volume que encontrei é um clássico da literatura internacional: “Lolita”, de Vladimir Nabokov, que se tornou famoso com a adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick, com James Mason, Sue Lyon, Peter Sellers e Shelley Winters. Grifei exatamente as primeiras palavras do livro. Não foi difícil entender a razão. Provavelmente, trata-se do início perfeito para uma trama literária. O texto é telegráfico e envolvente. Talvez seja o equivalente literário dos primeiros acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven: um trecho curto, com notas firmes e dramáticas, que promete algo excepcional a seguir.

Vamos ao texto grifado: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos o céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.”.

O livro seguinte foi “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Escolhi aleatoriamente uma frase grifada: “Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado”. Também gostei de ter sublinhado essa passagem, mas não me recordei a razão pela qual destaquei essas frases.

O livro seguinte foi uma coletânea de contos de Lygia Fagundes Telles, “Antes do Baile Verde”. Percebi a marcação em tinta na história que dá o título do livro: “Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão”. Achei interessante a descrição, mas também não sei o motivo pelo qual sublinhei esse trecho.

Abri mais um livro: “On the Road”, de Jack Kerouac. O primeiro conjunto assinalado foi o seguinte: “Para ele, o sexo era a primeira e única coisa sagrada e realmente importante na vida, ainda que, para sobreviver, ele tivesse que suar, blasfemar e tudo mais. Dava para sacar isso na maneira com que ele parava balançando a cabeça, sempre olhando para baixo, assentindo como um boxeador novato que recebe instruções, para fazer você pensar que ele estava escutando cada palavra, cuspindo milhões de “sins” e “claros” o tempo inteiro”. Bom trecho, admito, mas não sei o porquê de ter sido marcado.

Por fim, “A Sangue Frio”, de Truman Capote. São 422 páginas de um gênero que o autor batizou como “romance de não-ficção”. Há uma só frase sublinhada: “O depoimento de Wells, aperfeiçoado por ensaios anteriores ao julgamento, foi tão arrumado quanto a sua aparência”. Outro bom exemplo de texto instigante. Mas não sei o que me motivou a grifar essa sentença.

Talvez eu tenha sublinhado essas frases na esperança de revisitar aqueles livros e refletir melhor sobre determinados trechos – ou usar esses retalhos de narrativa como ideias que poderiam ser exploradas. Mas isso é pura especulação de minha parte. Como o personagem de “Laços”, sinto-me intrigado e movido pela curiosidade. Se aquelas frases foram grifadas, é porque tiveram uma importância no momento em que as li. Por que, então, não possuo nenhum registro em minha mente?

Prometo pesquisar a respeito e falar com especialistas para encontrar respostas. Diante de tudo isso, porém, só posso chegar a uma conclusão: nosso cérebro funciona de um jeito muito estranho.

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