Vários amigos me recomendaram o seriado “Disclaimer”, da Apple TV. A série é estrelada por Cate Blanchett, atriz premiada e talentosíssima. Depois de ver o primeiro capítulo, lembrei que Blanchett havia recebido recentemente um prêmio e havia exaltado a obra da escritora Clarice Lispector, lendo até um trecho de sua obra: “Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha abundância. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade” (trata-se de uma passagem da crônica “Diálogo do Desconhecido”, do livro “A Descoberta do Mundo”).
Dois dias depois, li em “O Globo” que seria lançado no dia 31 de outubro o livro “Clarice Lispector Entrevista” – uma coletânea de conversas que ela publicou nas revistas “Manchete” e “Fatos & Fotos” e no “Jornal do Brasil”, entre 1968 e 1977. Clarice Lispector jornalista? Não tinha esse registro em minha memória. A curiosidade, então, me dominou completamente. Encomendei o livro e esperei ansiosamente a chegada do texto no Kindle.
Clarice Lispector é uma escritora que prima pela capacidade de mergulhar nos pensamentos de seus personagens. No fundo, a trama é o que menos importa. Mas as recordações, ideias, raciocínios, impressões, opiniões e interpretações dos protagonistas, antagonistas e coadjuvantes tornam a leitura de seus livros algo muito especial. Ela também tem uma capacidade rara para descrever sentimentos – especialmente os derivados de melancolia – com delicadeza, dando ao universo particular de seus personagem uma dimensão revolucionária para a época em que sua obra foi escrita (“Perto do Coração Selvagem”, seu primeiro livro, é de 1943).
É uma escritora que leva a existência a sério e suas palavras dão aos leitores uma sensação de que estão experimentando uma vida superficial e fútil. Os personagens de Clarice são intensos e agudos. É um universo em que as relações estão sempre no limite — cada mundo particular sempre está repleto de pensamentos, divagações e teses.
Por conta de seu estilo literário, não esperava que ela executasse uma entrevista de um modo, digamos, jornalístico. Mesmo assim, me surpreendi com o tom intimista dos colóquios, lembrando um pouco do trabalho realizado pela jornalista italiana Oriana Fallaci, só que com muito mais tato e sensibilidade. Ao contrário da maioria dos entrevistadores, Clarice fala de si e consegue com isso fazer com que seus interlocutores se abram e entrem em seu jogo. Essa técnica pode ser vista em pingue-pongues com Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Mário Andreazza, Elis Regina, Mario Jorge Lobo Zagallo, Fernando Sabino, Emerson Fittipaldi, Roberto Burle Marx, Tônia Carrero, Nelson Rodrigues, Pablo Neruda e muitos outros.
Mas uma das melhores entrevistas desta compilação talvez seja com o cronista carioca Carlinhos de Oliveira – dono de um dos melhores textos já produzidos pelo jornalismo nacional. Realizada no Antonio’s, um reduto de intelectuais e boêmios cariocas entre os anos 1960 e 1990, a conversa — em alguns momentos — foi conduzida em silêncio. É que, de vez em quando, Clarisse interrompia o diálogo e escrevia perguntas. Entregava-as a Carlinhos, que rabiscava as respostas no mesmo papel. Leia um trecho:
CLARICE: Você até parece com aquele que dizia que a literatura era o sorriso da sociedade [N.R.: o escritor Afrânio Peixoto]. Fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois e ver o sangue correr. Nós dois, Carlinhos, gostamos um do outro, mas falamos palavras diversas.
CARLINHOS: Falamos a linguagem diversa, é verdade. Eu prefiro ser feliz na rua “a cortar a vida em dois”.
CLARICE: Eu prefiro tudo, entendeu? Não quero perder nada, não quero sequer a escolha. Mas me fale de seus planos, José Carlos.
CARLINHOS: Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.
CLARICE: Nem eu, meu caro. E estou vendo a hora em que começaremos, dentro da nossa amizade, a brigar. Também posso lhe dizer que, se viver é beber no Antonio’s, isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sede é maior que a sua.
CARLINHOS: Evidentemente.
CLARICE: Eu gosto muito de você, Carlinhos.
CARLINHOS: Mas aqui não estávamos falando de amizade e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.
Eu já gostava bastante da Clarice escritora. E adorei a Clarice entrevistadora. Portanto, se você não tem nada para ler neste final de semana, encare esse livro. Diversão garantida.
Uma resposta
Belíssima lembrança e homenagem, Aluizio querido, no Dia de Celebrar Os Que Se Foram. Eu tinha 17 anos quando li Perto do Coração Selvagem. Desde então, Clarice e eu nunca nos separamos.