Diz o senso comum que a Justiça deve ser imparcial. Por conta disso, o símbolo que representa o Judiciário é a estátua da deusa grega Têmis, que – vendada – segura uma espada com a mão direita e uma balança com a esquerda. A venda quer dizer neutralidade: todos são iguais perante a lei. A espada significa a força das decisões. A balança, por sua vez, quer dizer que os argumentos das partes envolvidas serão levados igualmente em consideração. Há uma variação desta obra em frente ao Supremo Tribunal Federal em Brasília, com a deusa sentada e a espada pousada em seu colo, sem a balança.
Curiosamente, foi o próprio STF quem atuou recentemente para tornar o conceito de imparcialidade um tanto difuso. Por seis votos a quatro, o Supremo decidiu que juízes poderão, daqui para frente, julgar casos em que as partes sejam clientes de bancas pertencidas a cônjuges, parentes e parceiros. Até essa votação, o que valia era o Código de Processo Civil. O texto determinava que magistrados teriam de se declarar impedidos de analisar processos com acusadores ou réus representados por empresas de advocacia pertencentes por parentes de até terceiro grau (bisavós e bisavôs, bisnetos, tios e concunhados).
Essa decisão não traz exatamente surpresas: já faz um certo tempo que o STF se coloca acima do bem e do mal. Aparentemente, os ministros se julgam infalíveis e donos de uma capacidade de neutralidade infindável. Neutralidade essa, por sinal, que os levará julgar o caso representado por um cônjuge com toda a ponderação necessária. Alguém acredita nisso? Se acreditar, também deve crer no coelhinho da Páscoa e no Papai Noel.
Os juízes, no entanto, se consideram uma casta à parte da sociedade brasileira. Eles acreditam que tudo podem e que são infalíveis em qualquer situação. Isso até pode valer do ponto de vista geral. Mas alguém acredita que um magistrado não vá ser influenciado por um parente na hora de julgar uma causa?
Para que não pairem suspeitas, a regra imposta pelo Código de Processo Civil era muito melhor. Mas a soberba destes juízes parece não ter fim, a ponto de aprovar um decreto que cause mal-estar entre o meio jurídico. Lembrando: Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes são casados com advogadas. Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Edson Fachin, por vez, têm filhos e filhas exercendo o Direito. Destes, apenas Fachin e Barroso decidiram votar contra a regra de flexibilização.
Na prática, os magistrados deram uma carta branca para si mesmos e obrigaram a sociedade a aceitá-la. Os brasileiros têm de confiar na imparcialidade dos juízes – ou se queixar ao Bispo, que possui menos autoridade que esses ministros.
Somente Cristiano Zanin, o noviço do Supremo, pode ser chamado a apreciar 14 processos que contam com a participação de sua esposa, Valeska Martins. Mas não se pode dizer que apenas os ministros ligados ao PT votaram favoravelmente à matéria (O próprio Zanin, Luiz Fux e Dias Toffoli). Gilmar Mendes (indicado por Fernando Henrique) e Alexandre de Moraes (por Michel Temer) também assinaram embaixo. Por fim, um dos escolhidos por Jair Bolsonaro, Kássio Nunes Marques, também integrou a turma do “liberou geral”.
Imagine que a mesma lógica do STF fosse levada para o setor privado – e que parentes de, por exemplo, um diretor de compras de uma empresa, pudessem concorrer como fornecedores desta companhia. Imaginem, agora, que esses parentes sejam escolhidos em meio a uma concorrência. O que os demais funcionários iriam pensar?
Sim, é exatamente isso que iremos imaginar quando algum parente dos ministros do STF ganhar um caso qualquer na suprema corte.
Uma resposta
Análise muito relevante. Esses juízes já não contam com a simpatia de parte da população e agora dão mais motivos para isto. O que me espanta mesmo é o silêncio conivente da OAB, da Associação de Juízes e de boa parte da imprensa brasileira.