Nesta semana que passou, recebi de vários amigos no Instagram um vídeo feito por inteligência artificial que mostrava John Lennon vivo, aos 85 anos de idade, passeando por Manhattan e tocando violão em uma festa — tudo embalado ao som de um de seus clássicos da carreira solo, “Jealous Guy”. Essa animação me fez lembrar que, no início dos anos 1970, Lennon morava em Nova York e estava no epicentro de várias manifestações contra a guerra no Vietnã ou de uma agenda de costumes que irritava os conservadores — em especial o presidente Richard Nixon, que era constantemente provocado pelo ex-beatle.
Um exemplo? A primeira faixa do lado B no disco “Imagine”, de 1971, era “Give me Some Truth”. Nela, ele detona os políticos em geral e menciona um certo “Tricky Dicky” (“Ricardinho Trapaceiro”), justamente o apelido que perseguia Nixon desde sua campanha ao Senado em 1949.
O resultado disso é que o presidente quis deportar Lennon, nascido na Grã-Bretanha, ao seu país de origem. A razão? Ele tinha sido condenado por posse de drogas em Londres – e isso poderia ser utilizado em um processo de expulsão. Então, em 1972, o governo americano abriu um processo de deportação contra o autor de “Mind Games”, que havia prometido fazer shows contra a reeleição de Nixon. Para piorar a situação do compositor, naquele ano a idade mínima para votar tinha sido reduzida para 18 anos. A Casa Branca achava que o músico poderia influenciar o voto desses jovens – daí a perseguição de Nixon ao ex-parceiro de Paul McCartney.
Lennon voltou atrás, desistindo dos shows, e convocou vários amigos a depor em seu favor: Joan Baez, Bob Dylan e o maestro Leonard Bernstein foram alguns deles. O processo se arrastou por três anos e foi arquivado pela Justiça americana. No final, Lennon ganhou seu “green card” e morou em Nova York até ser morto em 1980.
Na metade de março, o governo americano deportou uma professora da Universidade de Brown, Rasha Alawieh, por ter uma suposta ligação com o Hezbollah. O principal motivo, segundo as autoridades, seria uma série de vídeos favoráveis aos xiitas encontrada no celular da professor, recebida de outras pessoas e colocada na pasta de arquivos excluídos do aparelho.
Os motivos de deportação, pelo jeito, parecem ter diminuído de importância em relação ao que se observava no passado – e provas não são mais necessárias em muitos casos. No episódio de Alawieh, por exemplo, ela tinha um visto de trabalho em dia, mas foi presa no domingo retrasado, quando voltava do Líbano aos EUA, e colocada em um voo de volta na segunda-feira. Um pouco antes, Donald Trump evocara uma lei do século 18 para deportar um estudante venezuelano da Universidade de Columbia.
Se Trump fosse presidente no lugar de Nixon, ele teria deportado Lennon?
Provavelmente. Nixon tomou a mesma decisão, mas deixou a Justiça correr em seu próprio tempo. Já Trump não se importaria em tomar atalhos para obter o que deseja e talvez colocasse o ex-beatle a bordo de um avião em questão de dias. No mundo dos negócios, isso acontece a torto e a direito para acelerar a assinatura de um contrato. No big deal. Mas, no universo institucional diplomático, o feitiço pode virar contra o feiticeiro quando esses shortcuts são usados. Talvez houvesse um grande clamor popular se Lennon fosse despachado para Londres. Em compensação, dificilmente ele teria sido morto em 1980. Muitas vezes, o mundo não oferece uma saída justa para determinados personagens. Foi o caso do ex-beatle.